No documentário “Ex-Pajé”, são constantes as cenas que trazem o protagonista, Perpera, cuidando da igreja construída no meio de seu vilarejo. Entre esses vários momentos, dois se destacam: o primeiro é quando Perpera, após varrer a entrada do lugar, entra na Igreja e é engolido pela escuridão que há no interior; o segundo é quando o mesmo personagem surge trabalhando quase como um segurança do lugar, estando na parte frontal do plano, desfocado, observando o horizonte, enquanto no fundo do plano, em foco, está o líder religioso que catequiza os indígenas ali presentes. A primeira cena mostra imageticamente como a imposição do cristianismo engoliu os traços culturais nativos, enquanto a segunda mostra como a religião se tornou o elemento central da vida daquele vilarejo.
“Ex-Pajé”, documentário de Luiz Bolognesi, acompanha a rotina de Perpera e dos demais moradores de seu vilarejo, com o intuito de fazer um estudo sobre o mais danoso efeito da catequização dos indígenas: o etnocídio, que é o extermínio não do corpo, mas da cultura de um povo. E a câmera de Bolognesi registra justamente esse evento, a destruição e sufocamento da cultura indígena.
O grande trunfo narrativo de “Ex-Pajé” é a forma como o filme constrói sua crítica à dizimação da cultura indígena sem precisar verbalizar a ideia. Além da catequização, o domínio da tecnologia também gera o esfacelamento das tradições nativas. Há muitas imagens carregadas de simbolismo, como uma criança jogando um jogo de caça em um smartphone, além de cenas que reiteram como a rotina foi alterada em virtude das tecnologias que chegam à tribo – há, por exemplo, um plano que enquadra um fogão no centro, como se o objeto fosse um elemento dominante na rotina de uma família.
O mais interessante, porém, é observar como o filme trabalha a relação de Perpera com as religiões. O ex-pajé que guia a narrativa tem receio de dormir sem luz, pois acredita que os espíritos da floresta, furiosos por sua conversão, irão vingar-se à noite. Tal pensamento escancara completamente a farsa que é a conversão do protagonista, que parece aceitar o cristianismo apenas por receio de represálias – afinal, toda a tribo foi catequizada. Bolognesi ainda traz, em vários momentos, o ex-pajé sentado em seu lar, cercado por um véu anti-mosquitos que, simbolicamente, remete à prisão psicológica na qual o personagem está preso por não poder ser quem ele é de verdade.
Mesmo que seu sentimento oculto seja o lamento – afinal, Perpera repetidas vezes comenta de forma saudosa sobre os tempos em que era pajé -, o protagonista não reage às mudanças que engolem sua cultura. Cenas como aquela em que o personagem é carregado na caçamba de uma caminhonete representam como a tradição acaba sendo levada pela modernidade, e mostram como há um processo de transformação que parece ser irreversível.
Sendo em alguns momentos demasiadamente calculado, o que faz com que o público questione a necessidade de a obra ser um documentário, e não uma ficção, “Ex-Pajé” obtém sucesso ao retratar a lenta morte da cultura indígena, entregando ao público um olhar íntimo sobre uma questão pouco debatida na atualidade. Muito se ouve sobre a “modernização” dos indígenas, mas pouco se vê sobre suas condições de vida enquanto tentam conciliar suas tradições com a modernidade. O filme de Bolognesi é capaz de fazer o brasileiro, quem diria, olhar para as raízes do próprio país, e ver como todos somos cúmplices, seja por ação ou omissão, do etnocídio daqueles que aqui estavam há muito mais tempo que nós.