Os últimos dois anos estão sendo movimentados para a cineasta Sinai Sganzerla. Seus filmes mais recentes, “A Mulher da Luz Própria” e “Extratos”, vem percorrendo o circuito brasileiro de festivais, dos mais ao menos conhecidos, com fôlego admirável. O segundo, curta-metragem de 8 minutos, chega agora ao 48º Festival de Cinema de Gramado, pouco depois de ser exibido no Festival Internacional de Curta-Metragens de São Paulo, o Kinoforum.
“Extratos” é daqueles filmes dos quais a experiência espectatorial se beneficia de um conhecimento prévio acerca do contexto que o envolve. Montado a partir de imagens gravadas por Rogério Sganzerla e Helena Ignez, pais da cineasta, durante o início dos anos 1970, o curta funciona como um resgate de um período no qual o país vivia uma ditadura civil-militar que via os artistas com desconfiança. Quem conhece a história do casal – que anda lado a lado com a história do próprio cinema brasileiro a partir da década de 1960 – sabe que ambos, inclusive, estiveram exilados na Inglaterra durante os anos de chumbo do regime militar.
Não obstante a situação política do país, descrita pelo voiceover de Ignez, as imagens não carregam o tempo todo o pesar de um período sombrio. Salvador, Londres, Rio de Janeiro, Marraquexe e o deserto do Saara se desdobram em cores vivas diante do espectador, marcadas pelo grão da filmagem Super 8. De cabelos crescidos e bigode, Rogério encarna o artista brasileiro setentista. A narração de Helena, gravada décadas depois do que está em tela, fornece um contraponto às imagens.
História do país e história da família se intercalam e se confundem. Ao encabeçar o projeto, Sinai encara a tarefa de mediar essa linha tênue entre o pessoal e o histórico, e o faz em considerável habilidade. “Extratos” é um simultaneamente um passeio pelo mundo e pela história de uma família, o Brasil ora presente, ora à distância. Rogério e Helena estão sempre em fuga, mas nunca uma fuga protocolar, urgente. A fuga dos dois aproveita cada momento que é capturado pela câmera, um passo de cada vez. Acima de todas as coisas, aquele momento é a gênese de uma família.
“Extratos” não deixa de ser um filme sobre gênese familiar; um filme de memórias. Ao longo de sua enxuta duração de oito minutos, o curta é permeado pelo agudo sentimento da nostalgia. Nostalgia das passagens por tantos lugares, nostalgia do casal que viria a gerar um núcleo familiar. Nunca nostalgia das condições externas (políticas) às quais Rogério e Helena estavam submetidos, evidentemente.
A ditadura está sempre presente ali, nem sempre de forma direta, mas como um espectro. Enquanto trechos das duas personagens principais de “Extratos” em locações paradisíacas eclodem em imagens maravilhosas, o voiceover se ocupa de contrastar a beleza da situação com as condições amargas que causaram aquele exílio.
O grande trunfo está na construção dessa breve, porém imersiva experiência de vislumbrar o microcosmo de Rogério e Helena sob um ponto de vista intimista e carinhoso, porém sempre consciente.
No fim das contas, pode ser lido como um curta sobre os pequenos fragmentos de beleza que são capturados durante os momentos mais desfavoráveis. Sobre união em tempos de exílio político. Sobre família em tempos de incerteza. Sobre o amor enquanto a força que move o mundo e que move as pessoas ao redor do mundo. Uma fresta na vida dessa família extraordinária Ignez-Sganzerla, que Sinai, com seu olhar dedicado de cineasta e com o auxílio de uma montagem afiada, organiza muito bem.