Imagens que mostram uma igreja de múltiplas perspectivas são o cartão de visita de “First Reformed” (no Brasil, “Fé Corrompida”). Uma estrutura imponente, engrandecida não só pelos ângulos escolhidos – ao filmar a construção de baixo para cima, o diretor enaltece sua grandiosidade –, mas também por toda a carga histórica que carrega. Dois mil anos regendo a moral da sociedade ocidental. Paul Schrader escolhe começar seu filme apresentando não as pessoas, mas os espaços que estão acima dessas pessoas. Em “Fé Corrompida” vemos, sim, a perda da fé, a indignação, mas tudo isso acorrentado pela impotência dos personagens. É a constatação do fracasso do mundo que coloca em crise a própria existência dos indivíduos.
Como já foi discutido até mesmo pelo próprio Paul Schrader, há muito em comum entre “Fé Corrompida” e “Luz de Inverno”, uma das obras-primas de Ingmar Bergman, lançada em 1963. Porém, enquanto a obra do sueco foca na jornada particular do padre Tomas, vivido por Gunnar Björnstrand, que perde sua fé diante das mazelas do mundo, o longa do americano parte do conflito entre a estrutura cristã e o pastor Toller (Ethan Hawke), para chegar a uma crise de potência de toda a humanidade. O mundo está acabando, indo para o buraco, e Toller, assim como o ativista ambiental Michael (Philip Ettinger), não consegue conceber o fato de que “ninguém está fazendo nada” quanto a isso.
A ideia de que os espaços são mais poderosos que os indivíduos permeia toda a narrativa e não se restringe à igreja. Schrader parece expor como toda a humanidade vive uma crise de estruturas. O casamento entre Michael e Mary (Amanda Seyfried), por exemplo, parece existir mais em função da manutenção do tecido social patriarcal do que por qualquer conexão afetiva entre os personagens – e Schrader consegue sugerir isso sutilmente, introduzindo a casa do casal com um plano que evidencia a força do lar, filmando a moradia frontalmente, assim como foi com a igreja no início da projeção.
Schrader faz de “Fé Corrompida” um filme no qual seu protagonista, o pastor em crise existencial, passa a notar gradualmente a latente ruptura desse modelo de mundo, partindo da própria fé até chegar ao capitalismo – da questão ambiental trazida por Michael até as grandes corporações que comprometem a natureza. A tragédia está, porém, em perceber como Toller vê-se num beco sem saída, em uma situação na qual ele, como ser pequeno e irrelevante, nada pode fazer a não ser aceitar o destino.
Toda a estética da obra segue a ideia de um mundo sufocante e imutável. A claustrofóbica razão de aspecto em 1.37:1, por exemplo, parece empurrar os elementos da mise-en-scéne para o canto do quadro, bem como a escolha de planos que sempre oferece um olhar ora próximo dos personagens em sua intimidade – os planos detalhe nas mãos de Toller enquanto ele escreve seus diários –, ora distante quando estes estão em espaços imponentes – os planos gerais dentro da igreja Abundant Life, que, nas palavras de Michael, “mais parece uma empresa”.
Se falamos dos diários, é necessário ressaltar também a caverna na qual Toller se isola para refletir e produzir seus escritos. Com um lar sempre mergulhado na escuridão a não ser por frágeis lâmpadas ou sutis velas que o auxiliam em seu processo de escrita, o pastor faz do diário um meio não só de reflexão, mas uma verdadeira jornada de autoconhecimento. É incrível notar, portanto, que Schrader consiga utilizar a narração em off como uma forma de nos guiar pela gradual perda de convicção do personagem, com um texto que não chega a ser expositivo, mas mostra o crescimento do desconforto de Toller com o mundo que o cerca. Esse desconforto, inclusive, é brilhantemente representado pela atuação de Ethan Hawke, que mantém sempre uma voz rouca e oscilante, mas passa a desafinar quando constata algo grandioso e prejudicial ao mundo, como na cena em que, revoltado, se exalta com o líder de sua congregação e diz: “alguém precisa fazer alguma coisa!”.
Voltando à relação entre Mary e Michael, é interessante notar os paralelos que Schrader traça a partir do casal. A obra mantém-se presa ao mundo material por praticamente toda sua metragem, mas alcança o espiritual de forma alegórica. Há, por exemplo, a jornada de Mary, uma mãe ainda grávida que, em vez de agraciada pela luz divina do espírito santo, como é na Bíblia, é abandonada pelo companheiro que opta pela própria morte. É como se a obra fizesse uma releitura do mito cristão e o jogasse nesse mundo desamparado, e impotente de Schrader.
Mas Schrader não cria uma obra que seja, em última análise, apenas pessimista. Na verdade, “Fé Corrompida” parte dessa luta perdida contra sistemas consolidados para apontar para a transcendência como único caminho. Uma transcendência que só pode ser alcançada na quebra dos padrões, na quebra do sistema. Uma transcendência que, mesmo que seja dolorosa para uma das partes – e Schrader faz questão de, nesse ponto do filme, trazer o metafórico para o físico, vide o arame farpado que cobre o corpo de Toller –, acaba sendo alcançável justamente por uma das únicas formas de agir que são alheias aos espaços e aos sistemas que eles representam: um gesto de amor que subverta as normas espaciais.
É nesse movimento de afeto, então, que Schrader diferencia sua obra do clássico ao qual faz referência. Se Bergman fecha “Luz de Inverno” de maneira pessimista, com Tomas abaixando a cabeça para a realidade e aceitando sua condição, Schrader acredita que a salvação só reside no rompimento da ordem. Se os planos iniciais de “Fé Corrompida” ressaltam a força dos espaços, a conclusão mostra como o total desligamento destes é o que resta para aqueles personagens tão marcados pelo sofrimento.