Grande vencedor do Festival de Gramado em 2018, Ferrugem, de Aly Muritiba, é um filme tão corajoso em sua forma quanto desleixado em suas análises. A obra, que acompanha os desdobramentos de um caso envolvendo o vazamento de um vídeo íntimo de uma adolescente, começa falando sobre bullying, passa por pornografia de vingança, para, enfim, mostrar a que veio: é um longa sobre desamparo e despreparo. Crianças criadas e protegidas por adultos inaptos, arrogantes e distantes de seus filhos.
Muritiba opta por dividir sua obra em dois atos: há um capítulo dedicado a Tati (Tifanny Dopke), a jovem cujas imagens foram vazadas, e outro protagonizado por Renê (Giovanni De Lorenzi), o colega de Tati que, possivelmente, é um dos responsáveis pelo vazamento. Com essa divisão, Ferrugem garante que não será apenas uma obra sobre as consequências da pornografia de vingança ou algo do tipo. É, sobretudo, uma análise de cenário que, excluindo o machismo intrínseco à nossa cultura – que surge como sintoma, mas não como causa – fala sobre alguns dos principais pontos que fomentam situações de ódio, falta de empatia e isolamento social na juventude.
Na construção da trama de Tati, há escolhas técnicas muito interessantes para estabelecer o cenário onde a personagem se encontra. O uso de uma profundidade de campo pequena ajuda a isolar a personagem, fazendo com que Tati esteja destacada no plano, enquanto os demais personagens acabam distantes pelo desfoque. Na jornada dessa personagem, porém, a escolha mais eficiente é a de não nos mostrar os pais de Tati, o que faz com que sua ausência seja um elemento definidor para o desamparo sentido pela adolescente.
A grande sacada de Ferrugem é a inversão de perspectiva que há da primeira para a segunda metade. A obra passa a acompanhar Renê justamente no momento em que o personagem está mais vilanizado para o público, deixando claro que o objetivo não é ser um simples filme-denúncia sobre o vazamento de vídeos íntimos, crime que cresceu com o avanço das redes sociais, mas sim ser um estudo sobre a forma como as novas gerações lidam com medo e culpa, e como os pais dos adolescentes influenciam na formação dos filhos. Renê tem, obviamente, sua parte da culpa no crime que vitimou Tati, seja pelo vazamento do vídeo – que, até o fim da obra, não fica claro como começou –, seja por negligenciar apoio à menina, mas seus erros são resultado de uma equação iniciada na criação irresponsável e superprotetora de seus pais.
É interessante perceber, portanto, os pequenos detalhes que mostram a influência paterna nos personagens mais jovens. Renê e seu primo, por exemplo, têm o pai do primeiro, Davi (Enrique Diaz), como referência. Professor de todos os adolescentes do longa, Davi é um fumante, característica que se faz presente justamente em seu filho e sobrinho. A característica de menosprezar problemas e relativizar erros também é visível em Davi e constantemente reproduzida por Renê e seu primo – algo que é potencializado pela boa atuação de Enrique Diaz, que mantém um semblante calmo na maior parte do tempo, mas, sempre que é confrontado, age de maneira apressada e agressiva.
O filme traze metáforas visuais arrojadas. Uma delas é a casa em ruínas onde Renê se refugia e discute sua relação com sua mãe, simbolizando o porto seguro destruído pela separação de seus pais. Outra está na discussão entre os pais de Renê, que traz os adultos batendo boca enquanto dirigem pela cidade tentando desembaçar o vidro do carro, representando a turva visão que ambos têm da situação. De fato, Ferrugem é um filme de conceitos visuais interessantes; o problema é que, para fortalecer tais alegorias, metáforas e conceitos, há de se aprofundar as discussões, algo que não acontece principalmente pela falta de refino do roteiro.
Em vez disso, em boa parte do tempo a obra se limita a repetir os desdobramentos óbvios de situações como a culpabilização da vítima e o menosprezo da culpa do responsável pelos vazamentos, mas nunca traz algo de novo para a discussão. Ferrugem, portanto, limita-se a contar o trivial, tendo como diferencial apenas sua estrutura e construção visual. Como resultado, torna-se um filme-denúncia tematicamente superficial.
É irônico, portanto, que um filme sobre desamparo acabe não tendo o amparo de um roteiro mais robusto para que seu estudo de personagens possa engrenar. É nítida a bolha em que Renê se encontra, já que seu pai, assim que fica diante de uma situação trágica, opta por viajar para a praia com os filhos em vez de enfrentar a realidade – algo que poderia se tornar uma questão interessante, mas surge tardiamente e acaba sendo mais um gatilho dramático do que uma discussão. Há, portanto, uma busca por deslocamento, uma fuga do fato para que o personagem não sofra. Na ânsia de proteger seu filho, Davi acaba alienando-o e privando-o do aprendizado trazido pelo erro. Uma pena que a obra negligencie tanto a possibilidade de dar novas camadas.
Com um foco muito maior na forma do que no conteúdo, o trabalho de Muritiba peca por não dar camadas aos seus personagens nem dar ao espectador um vislumbre do que se passa na mente dos jovens retratados. Há não só um distanciamento da consciência de Tati e Renê, mas um desinteresse por discutir qualquer um dos temas propostos. Eles estão lá, de fato. O desamparo, a solidão, o bullying e o machismo existem e são palpáveis, mas nunca são a porta para um debate, e sim o ponto final de Ferrugem.