“Nem sempre a gente sabe o que está filmando”, diz a voz over de João Moreira Salles enquanto analisa, no início de No Intenso Agora (2017), um filme de família que registra um fragmento da profunda desigualdade de classe no Brasil. As imagens que disparam Filme Particular, de Janaína Nagata, aparentemente obedecem a um princípio similar: um filme familiar misterioso, registros de uma viagem à África do Sul em algum momento não especificado, encontrados acidentalmente pela diretora. Mas, conforme a narrativa avança e Janaína compartilha seu processo de pesquisa na própria diegese, a feitura de tais imagens perde parte de sua suposta inocência.
Filme Particular é, na maior parte do tempo, construído a partir de uma lógica de hiperlink. Janaína abre para o espectador a tela de seu computador dividida entre as cenas do tal filme familiar e a busca por informações extraídas do que aparece nelas. Nesse sentido, se diferencia do trabalho de Moreira Salles por estabelecer uma relação principalmente centrífuga com as imagens, enquanto No Intenso Agora segue o movimento inverso, de mergulho interpretativo nos elementos que compõem cada quadro. Filme Particular se interessa menos por quem filma e como filma e mais pela abertura para o mundo que as imagens propiciam.
O que não reduz sua eficácia no sentido de, primeiramente, chamar a atenção para a necessidade do olhar atento e inquiridor para os filmes. A predisposição à exegese visual como requisito básico do se interessar por cinema – e é bastante significativo o fato de Janaína fazer esse movimento com recursos hoje facilmente disponíveis. Mas o que realmente emerge com enorme força em Filme Particular é o discurso sobre a presença da política mesmo nos registros aparentemente mais prosaicos: uma criança segurando uma bandeira pouco lembrada, famílias se divertindo em parques, praias e piscinas, paisagens naturais encantadoras etc. Não existem filmes exclusivamente particulares.
A diretora manipula brilhantemente a revelação dessa dimensão, produzindo cumplicidade e crescente surpresa conforme a investigação avança e novos desdobramentos ocorrem. Essa condução de olhares e de emoções é tão bem realizada que Filme Particular consegue se assumir como um filme político num sentido mais estrito – de exposição de informações sobre determinada realidade histórica e mesmo, no final, de explicitação de uma mensagem – sem sequer cogitar abandonar seu dispositivo.
Resta apenas como ressalva a lacuna de uma análise mais propriamente voltada à produção do filme familiar em questão. Janaína até ensaia esse movimento na forma como fricciona as cenas encontradas contra sons e imagens provenientes de sua pesquisa, mas os resultados desses choques variam da indefinição de propósito (a inclusão de uma trilha sonora bastante atmosférica que acompanha a exibição do material bruto) à obviedade (a comparação com vídeos atuais de famílias visitando a África do Sul ou a justaposição entre uma fala de defesa do apartheid pelo Primeiro-Ministro sul-africano Hendrik Verwoerd e momentos que apontam para a perversidade do regime).
Há, afinal, uma particularidade nesse material: diferentemente das pessoas de classe média que, no Rio de Janeiro da década de 1960, filmaram um momento cotidiano e acabaram revelando uma lógica de exclusão social enraizada, a gente comum de Filme Particular transita despojadamente entre os donos do poder na África do Sul do apartheid, totalmente consciente disso. Quem eram essas pessoas? Quem era o sujeito sempre sorridente que parece encabeçar esse tour meticulosamente registrado e inclusive editado? O esforço feito por Janaína para tentar responder a essa dúvida é, ao menos no interior de seu filme, mínimo, lateral. Por outro lado, é fato que a ausência de resposta alimenta a aura enigmática, fantasmagórica, que ronda Filme Particular. Nem sempre a gente sabe o que está vendo.
Texto escrito para nossa cobertura para o festival Olhar de Cinema 2022. Para acessar a página da nossa cobertura, clique aqui.