É interessante que Freda, estreia na direção de longas-metragens de ficção da haitiana Gessica Généus, comece com uma cena de memória/pesadelo da personagem-título (Nehemie Bastien), já que ela parece reforçar a impressão apriorística de que se trata de um filme totalmente centrado nos dramas dessa jovem moradora de Porto Príncipe. Mas logo fica claro que esse início, bem como a própria Freda, são na verdade uma porta de entrada para um grupo maior de figuras humanas, cujas jornadas Généus aborda com considerável delicadeza. Por vezes, inclusive, a irmã mais nova da protagonista, Esther (Djanaina Francois), ganha até mais espaço, tomando as rédeas da narrativa.
E é um mérito da jovem diretora conseguir transitar por questões diversas que movem diferentes personagens sem jamais perder de vista a delicadeza como força motriz. Por meio de Freda, Esther e sua mãe Jeanette (interpretada pela excelente Fabiola Remy), Généus fala de lugares ocupados por mulheres pobres no Haiti contemporâneo, enquanto, ao deslocar seu olhar para o namorado e o irmão da protagonista, dá destaque à migração como fator crescentemente presente no país caribenho. São dois exemplos mais imediatos, mas Freda abre uma brecha mesmo para a dor de cotovelo de um personagem bastante secundário, o que leva a um instante emocionalmente bem bonito.
Généus escapa sabiamente da propensão a filmar uma realidade de desigualdades e privações num estilo excessivamente árido, em que a mera exibição dessas características de forma crua bastasse para a constituição de uma dramaturgia considerada legítima na contemporaneidade. A diretora lida diretamente com o realismo, como tinha que ser nesse caso, mas não abre mão de arriscar desdobramentos dramáticos mais explícitos, apresentando sem nenhum pudor dilemas e sentimentos experimentados pelos personagens. Isso fica bem claro no deleite com que filma as saídas noturnas desses jovens, suas passagens por um clube onde cantam, dançam e namoram.
A delicadeza e a generosidade desse olhar são ainda mais ressaltadas no encontro com as imagens brutas, documentais, de manifestações populares contra a situação econômica, política e social do Haiti. Essas cenas pontuam a narrativa de Freda, chamando a atenção para um contexto extremamente difícil que molda aquelas existências. A integração entre esses breves, mas poderosos, momentos documentais e a encenação ficcional refinada de Généus é total, até porque essa última jamais busca edulcorar as experiências dos personagens. Há, enfim, muita dureza no filme, mas há também carinho nas escolhas da diretora, que parece o tempo todo dizer que, apesar de tudo, a vida resiste.
Texto escrito para nossa cobertura para o festival Olhar de Cinema 2022. Para acessar a página da nossa cobertura, clique aqui.