Muito mais do que um filme de ação, Ghost In The Shell (1995) é um exercício de análise sobre a existência humana. Por mais que tenha se tornado referência estética (tendo influenciado obras revolucionárias, como Matrix), o grande diferencial do longa é seu conteúdo filosófico. Se a humanidade chegar ao ponto de ser capaz de fabricar máquinas que pensam, sentem, lembram e agem como nós, humanos, o que nos diferencia delas? Por quê seriamos melhores, se a diferença habita apenas em nossos corpos? A essência (ghost) dentro do corpo (shell) realmente importaria, visto que pode ser criada artificialmente? E tal adaptação para a cultura ocidental era o maior risco que o jovem diretor Rupert Sanders poderia correr. O público em geral, afinal, não só não compreende como não tem interesse em compreender tramas menos mastigadas, e Ghost In The Shell exige uma quantidade de diálogos quase impraticável em um blockbuster. O resultado do remake é um filme que até equilibra bem a ação com o roteiro, mas que muda o foco do original e fica muito aquém da obra de 95 por forçar o diálogo com a geração atual.
A premissa é basicamente a mesma: em um futuro distante, onde a tecnologia avançou a ponto de ser capaz de repor membros e órgãos, Major (Scarlett Johansson) é uma ciborgue que trabalha na Seção 9, divisão policial que investiga e combate terroristas e criminosos cibernéticos. Enquanto investiga um misterioso hacker que tenta destruir a Hanka Robotic, companhia responsável pela construção de máquinas (incluindo o corpo da própria protagonista), Major começa a questionar seus superiores e sua própria existência. Por mais que o objetivo do remake não seja o mesmo do de 1995, há de se pontuar um aparente problema: os realizadores parecem não ter compreendido o viés do filme. Enquanto a animação questiona a diferença entre uma consciência artificial e uma orgânica (considerando que ambas tenham os mesmos potenciais de memória e sentimento), o novo cai no campo comum de diversos filmes atuais que apenas debatem a questão da essência humana. Como manter-se fiel à sua essência quando seu corpo é composto (ou alterado) artificialmente? Como preservar sua identidade? Claro que não há problema nenhum em tal ideia, mas é algo muito básico diante do que presenciamos na versão de Mamoru Oshii há vinte e dois anos.
A fim de tornar Ghost In The Shell mais acessível para a geração atual, o filme utiliza os adventos tecnológicos daquele mundo para, alegoricamente, questionar a atual relação da sociedade com a tecnologia. O problema é que, mesmo sugerindo tais metáforas ao longo da projeção, em momento nenhum o roteiro aprofunda o assunto. Em inúmeras cenas, espera-se diálogos como os de Major e Batou no barco em 1995 ou os da protagonista com o Mestre das Marionetes (vilão que, inexplicavelmente, foi ignorado). O vilão, aliás, é também um problema. Apesar de funcionar como figura antagonista graças à seu caprichado e ameaçador visual, diferente do Mestre das Marionetes de 1995, que era um produto de seu meio, uma mente “fantasma” tão consciente quanto qualquer pessoa, aqui temos apenas um ser confuso, frágil e excessivamente humano. Sem a existência de uma figura artificial no elenco principal, portanto, o filme é incapaz de mostrar a “robotização” da humanidade paralela à “humanização” das máquinas, que é uma relação imprescindível para o funcionamento da narrativa de 1995.
Na animação, por exemplo, há um diálogo entre o vilão e as autoridades, quando o Mestre das Marionetes diz aos “humanos” que estes nunca encontrarão seu corpo, pois ele nunca possuiu um, para em seguida agir de acordo com seu livre-arbítrio e exigir seus direitos humanos. Já no remake hollywoodiano, o diálogo que seria “equivalente” a tal momento se resume a personagens tentando lembrar seu passado e questionar suas origens, algo que não só não possui profundidade alguma, como apenas fragiliza os envolvidos na cena. Mas tal vazio nem de longe torna o live-action ruim. Apesar da história não ter sido plenamente compreendida e reconstruída para sua nova versão, o filme é extremamente feliz como um blockbuster de ação. O capricho para a reconstrução do visual da animação é notável. Desde os figurinos e armas à ambientação da cidade futurista, tudo é muito bem estabelecido e impactante. Enquanto a animação criava uma cidade apenas poluída por fios e de aparência desgastada, aqui vemos um ambiente mais afetado pela tecnologia. Há não só o mesmo excesso de cabos de metal e sujeira por todas as ruas e prédios, mas também gigantescas projeções holográficas de propagandas de produtos e tratamentos estéticos, que é uma bem-vinda sátira ao culto ao corpo perfeito que existe no século XXI.
É interessante notar, por exemplo, como nos planos abertos ou aéreos que retratam a cidade, os humanos são praticamente imperceptíveis, sempre mal iluminados e ofuscados pelo excesso de neon e projeções holográficas. Há, inclusive, pedestres com sinalizações de propaganda em seus corpos, que é uma interessante forma de retratar a perda da identidade trazida pelo uso descontrolado e descerebrado da tecnologia. Para completar tal ambientação soturna, a manutenção de uma paleta de cores azulada e escura ajuda a imprimir o tom sério e melancólico da protagonista, que nunca está satisfeita com as respostas que tem. Outro acerto é tentar aprofundar a relação de Major com o mar. Se ao conectar-se às maquinas e redes a protagonista imerge num sufocante oceano de informações (os ditos “mergulhos”), mergulhar em um oceano real (em uma bela cena onde a personagem aparece nas profundezas do mar, próxima da vida orgânica que ali habita) é sua forma de sair da alienação trazida pelo mundo conectado do filme. Isolar-se da tecnologia e manter-se em contato com o ambiente mais natural possível é a forma da personagem encontrar sua humanidade (ou o que restou dela). Esse mesmo momento, porém, é fragilizado por não reproduzir nem adaptar o fantástico diálogo sobre identidade que há na animação. Ao tentar referenciar e aprofundar um conceito da animação, o remake acaba ignorando outros tão ou mais importantes.
Um aspecto que pode incomodar parte do público é o ritmo. Mesmo tendo apenas 107 minutos de metragem, Ghost In The Shell faz cada minuto ser sentido. A montagem é demasiadamente linear, mesmo nas sequências de ação, não alternando um estilo de cortes mais rápidos e outro com planos mais longos quando necessário. Somado ao uso de planos com lenta movimentação que nada acrescentam esteticamente, acabam tornando Ghost In The Shell cansativo em seu segundo ato, principalmente pela sensação de que a trama não está se movimentando. Por outro lado, a alternância de momentos com desenvolvimento da trama e sequências de ação é bem feita, mesmo que sua estrutura se repita por quase toda a projeção. O problema é que por não ter certeza de que quer ser um blockbuster de ação ou um hard sci-fi, o filme arranha ambos os estilos sem aprofundar-se devidamente em nenhum dos dois.
Muito distante do desastre que parte do público espera, A Vigilante do Amanhã: Ghost In The Shell é uma obra que, dentro de sua proposta, pouco falha e pouco arrisca, mas entrega entretenimento com muita dignidade. O problema é, como já dito, praticamente ignorar a veia filosófica da obra de 1995, o que do ponto de vista artístico, enfraquece o projeto. Enquanto o filme de Mamoru Oshii analisa a decadência da humanidade como espécie, retratando a humanização da máquina e a mecanização do homem, o remake de Rupert Sanders dialoga com a geração Z e apenas questiona como a tecnologia nos afeta como indivíduos nas superficialidades do dia-a-dia. Em suma, a animação é um ensaio sobre a essência e o futuro da nossa espécie, enquanto o live-action funciona como uma leve crítica a sociedade moderna. É diferente? Sim, muito. É ruim? Não necessariamente.