Sebastian Lelio é um cineasta latino em franca ascensão na indústria hollywoodiana. O salto de Lelio começou em 2017, quando o ótimo “Uma Mulher Fantástica” ganhou o Oscar de Melhor Filme em Língua Não-Inglesa – aliás, foi o primeiro filme protagonizado por uma mulher transexual a levar a estatueta. Em seguida, Lelio dirigiu o subestimado “Desobediência”, longa que narra o amor entre duas mulheres inseridas em uma comunidade judia ortodoxa. Seu trabalho seguinte, “Gloria Bell”, tem muito em comum com ambos os filmes e não é por acaso: é um remake de uma obra do próprio Lelio lançada em 2013, “Gloria”. No filme de 2018 (lançado no Brasil em 2019), o chileno estuda a solidão de uma mulher, tema presente em toda a filmografia do diretor.
Há um enorme interesse de Sebastian Lelio por estudar as relações familiares e o isolamento de suas protagonistas. Se em “Uma Mulher Fantástica”, Marina (Daniela Vega) precisa lidar com a solidão após a morte de seu companheiro e afastamento dos familiares transfóbicos, em “Desobediência”, o diretor faz um estudo de como o afeto pode ser o meio de inclusão de pessoas isoladas – no caso, a protagonista de Rachel Weisz mantém um afastamento emocional de todos por não se enquadrar nos costumes de sua comunidade.
Em “Gloria Bell”, essa personagem cercada por solidão é a mulher divorciada vivida por Julianne Moore. Gloria tenta substituir essa solidão de diversas formas. Seja pelos relacionamentos casuais com os homens que conhece na pista de dança, seja na tentativa de se reaproximar de seus filhos, que já estão chegando na casa dos 30 anos. Lelio nunca verbaliza essa solidão pelo roteiro, dedica o script apenas para os diálogos e relacionamentos dos personagens. A solidão e o abandono, porém, estão presentes em todos os movimentos dessa trama.
Algumas escolhas são muito acertadas para estabelecer os constantes abandonos que permeiam a trajetória de Glória. Quando ela tenta se conectar com os filhos, por exemplo, não é raro que, vez ou outra, os personagens se afastem até desaparecerem do enquadramento e deixarem Gloria sozinha, bem como não é raro que esses personagens terminem suas cenas sempre substituindo Gloria por alguma atividade ou personagem – a filha que a troca pelo passeio de carro com o namorado e o filho que precisa lidar com os próprios problemas familiares.
Gloria parece não ter controle nenhum sobre quem entra e sai de sua vida, algo que Lelio trata até como piada mostrando como nem o lar da protagonista é um espaço exclusivamente dela. Além do vizinho que ouve música em volumes absurdos e não controla o próprio temperamento, há o estranho gato que entra em seu apartamento, mesmo que todas as janelas e portas estejam trancadas. O espaço de Gloria, portanto, é violado não só pelo som, mas espacialmente. A personagem tenta se complementar com relacionamentos enquanto não consegue nem mesmo controlar seu próprio lar.
Para desenvolver a jornada de sua protagonista, Lelio utiliza Arnold como contraponto. O personagem, vivido pelo sempre interessante John Turturro, é um pai divorciado que ainda vive em função de suas duas filhas adultas e da ex-esposa. É um personagem que, assim como os filhos de Gloria, constantemente abandona a mulher, seja esse abandono mais sutil, como um afastamento gerado por um pico emocional, seja ele mais escancarado, como em cenas nas quais o personagem simplesmente desaparece sem explicações prévias. Através de seu espelho masculino, então, Gloria é capaz de compreender que a autopreservação é basilar para que qualquer relacionamento seja frutífero. Como é dito em algum ponto de “Gloria Bell”: todos têm o direito a sua própria vida.
Gloria parece uma personagem perdida no tempo, que tenta conceber que seus filhos partiram e agora vivem suas próprias vidas, enquanto ela ainda é saudosa em relação à própria juventude – o gosto pelas músicas dos anos 70 e 80, por exemplo, sublinham essa ideia. É interessante que Lelio permita ao público ter uma visão que não é compartilhada pela protagonista. Se Gloria ainda busca viver em função de suas relações, o fato de Lelio filmar a personagem se divertindo sozinha ou sendo deslocada de potenciais interesses amorosos – o uso do racking focus, por exemplo, a afasta dos personagens por colocar cada indivíduo em uma distância focal diferente – nos mostre como o problema vai muito além da solidão, é a dificuldade de curtir a própria presença.
Ao refazer a própria obra, Lelio encontra uma forma de trabalhar, agora mais amadurecido, um filme basilar de sua carreira. Um trabalho muito semelhante foi feito recentemente no paraguaio “As Herdeiras“, de Marcelo Martinessi (que parece ter sido bastante influenciado pelo “Gloria original). No filme de Martinessi, porém, falta à protagonista a coragem para abandonar o meio em que está inserida; para Gloria, o que falta apenas é a consciência de que ela pode ser feliz sozinha. Nesse sentido, “Gloria Bell” acaba se diferenciando tanto de “Uma Mulher Fantástica” quanto de “Desobediência”, pois foca não no choque de sua protagonista com uma sociedade que a rejeita, mas sim em uma sociedade que vende a ela a ideia de que relacionamentos são o auge da felicidade, quando fica claro que, para Gloria, o que falta é apenas autoreconhecimento do ser humano incrível que ela é.