Baseado na história da amizade entre músico Don Shirley e seu motorista Tony Lip, “Green Book” utiliza um evento específico – uma viagem de dois meses realizada pela dupla – para criar um carrossel de exposição de situações de racismo no sul dos Estados Unidos durante os anos 60. Na trama, Shirley programou uma turnê musical que descia de Nova Iorque e cruzava parte do sul do mapa, da Carolina do Norte até o Mississipi. O pianista precisava de um acompanhante que não só fosse seu motorista, mas assistente particular, capaz de ajudá-lo a se virar por terras onde o racismo era institucionalizado ao ponto de haver ambientes nos quais negros não tinham direito a acesso.
Cada parada dos personagens em uma das cidades da turnê expõe uma situação diferente. Violência policial, estabelecimentos que rejeitam clientes “de cor” e até mesmo o racismo velado que parte das pessoas que contrataram Shirley para tocar em suas casas de eventos. Diversas cenas expõem as dificuldades de ser um homem negro na América dos anos 60. O diretor, Peter Farrelly, porém, opta por uma visão apaziguadora para todas essas situações. Sempre que Shirley (Mahershala Ali) está em uma situação que testa seus limites, Tony (Viggo Mortensen) chega para pacificar e resolver o problema. O inverso também acontece.
Essa opção por não entrar em conflitos pode até ser interessante para fugir de dramas óbvios, mas acaba gerando um filme que foge demais da tensão. Mesclando o road movie com uma clássica história de amizades improváveis entre pessoas opostas, Farrelly consegue chegar a diversas reflexões sobre as diferentes formas de racismo, que inclusive está presente no próprio Tony Lip, mas nunca permite que tais reflexões moldem algum segmento da obra. A escolha é por uma visão amena, que permite que qualquer mínimo conflito seja resolvido e não deixe marcas para as cenas seguintes.
Outro equívoco de Farrelly está na decupagem de algumas cenas. A construção visual do clímax é extremamente problemática e expõe o quanto o cineasta foge do drama. Há uma cena envolvendo uma discussão, na chuva e à noite, em que Farrelly sequer aproxima a câmera de seus personagens – o drama poderia ser potencializado se ao menos acompanhássemos a cena por meio de um primeiro plano ou close-up, em vez de um plano aberto distante e frio. Há uma rejeição do conflito, que visa a manter uma aura suave na narrativa. É como se a vibe buddy movie contagiasse toda a obra e impedisse que qualquer cena mais questionadora tivesse espaço.
As atuações de Ali e Mortensen servem bem ao propósito da narrativa e são o carro chefe de “Green Book”. Enquanto o primeiro constrói um personagem introvertido e tímido, que é condizente com um sujeito marcado pelo preconceito, o segundo é o clássico estereótipo do italiano extrovertido, desbocado e emotivo. As diferentes personalidades, obviamente, rendem inúmeros momentos que expõem o abismo que há entre Shirley e Tony, e é justamente nesses momentos que “Green Book” consegue extrair o que tem de melhor: o despretensioso e suave humor gerado pelo confinamento de duas figuras praticamente antagônicas em um mesmo espaço.
Farrelly tem méritos por conseguir extrair humor de um estilo de cinema um tanto quanto saturado, mas merece críticas por confinar seu filme em um rodízio de situações humilhantes sem que haja qualquer peso dramático resultante dessas situações. Ao tentar ser demasiadamente respeitoso para com as figuras retratadas, “Green Book” acaba sendo uma comédia divertida, mas que arrisca pouco. Parece ser um filme um tanto quanto anacrônico, que serviria muito bem ao cinema dos anos 80, mas que hoje parece defasado, ultrapassado.