A primeira cena de Guerra Civil já estabelece a tensão que orienta todo o filme. O presidente dos Estados Unidos ensaia seu discurso de vitória enquanto a montagem alterna sua fala com imagens dos conflitos nas ruas de Washington. “A vitória está próxima”, tenta dizer o personagem enquanto gagueja e é interrompido pela realidade. Guerra Civil existe sempre nesse conflito de certezas entre o que é dito e o que é real. Para investigar isso, ninguém melhor do que jornalistas de guerra, que vão a campo registrar o que está acontecendo e confrontar a narrativa presidencial. E é isso que Garland filma durante toda a trama: um grupo de jornalistas atravessando o leste do país e revelando que não, as coisas não estão bem e não há qualquer perspectiva de vitória ou paz no horizonte. Quando faz esse carrossel de situações análogas aos conflitos sociais da sociedade americana de um amanhã não tão distante, Guerra Civil é bem feliz, mas…
O problema reside em um elemento muito simples: a guerra em si. Garland não mede esforços para reiterar sua convicção de que a América é um país dividido e na iminência de um grande conflito. A questão é que a tal guerra, que é a base para que todas as outras ideias do filme sejam desenvolvidas, é estúpida e oca. Não é proposto que essa guerra seja justificada, que os lados tenham posição ou que sequer você saiba exatamente o que gerou o conflito. Garland se propõe a usar o conflito apenas como metáfora, se esquecendo que nada puramente metafórico funciona. Há de se ter um diálogo material com o objeto de estudo. A metáfora é uma consequência de um conflito bem definido e justificado. A maior referência aqui é Nascido Para Matar, longa em que Stanley Kubrick em momento algum se furta de falar abertamente sobre a invasão americana no Vietnã para, depois, transformar o longa em um ensaio sobre belicismo, cultura militar e voyeurismo.
É o passo primordial sedimentar uma guerra antes de aprofundá-la. Vivemos em um mundo de muitos conflitos simultâneos e com uma carga de duas guerras mundiais e diversas invasões imperialistas pelo mundo. O mero retrato de um conflito não dá vazão ao que passa os Estados Unidos, muito menos o genocídio palestino promovido por Israel ou qualquer outro conflito de sua escolha. Há de se posicionar e esclarecer quem luta pelo quê. Ser contra a guerra não é o suficiente, há de se apresentar os motivos para tal. Garland parece não estar muito interessado em investigar o caminho que a América e o mundo estão trilhando e muito menos em propor um exercício imaginativo de suas consequências. É a guerra pela guerra, como se a obra falasse de todas as guerras – o que a leva a não falar de nenhuma.
É inconcebível um filme que fale de guerra e jornalismo, tentar ser apolítico. É uma visão infantilizada, que pode ser classificada ao lado de falas como “minha arte não tem partido” ou “sou contra tudo isso que está aí”. Gosto de contrastar Guerra Civil com outro filme americano, que foi o que melhor da indústria a falar sobre política nos últimos 10 anos: Mad Max: Estrada da Fúria. Enquanto Miller afasta-se muito da realidade, mas sem esquecer os alicerces sociais e políticos que sedimentam o capitalismo – e muito por isso, seu Immortan Joe previu com maestria o que se avizinhava no país e no pós-capitalismo como um todo – Garland traz uma narrativa muito menos distópica, que almeja se aproximar da nossa apenas pela ambientação nas grandes cidades, mas que é incapaz de construir qualquer diálogo com o mundo lá fora. Títulos como “Antifa” e “Frente Ocidental” são jogados sem qualquer significado para além de categorização de grupos.
A conclusão é que a única visão política que Garland é capaz de apresentar é que a guerra é ruim. Mas qual guerra? O que está em jogo? Quem está lutando? Quais as forças em oposição e quais as demandas de cada lado? No final, as profundidades das imagens, do filme e de Alex Garland são as mesmas do personagem que, como último discurso, apenas diz “não me matem”. Assim como a arte não existe em um vácuo, nenhuma guerra existe sem um contexto, e por isso, Guerra Civil é um filme alienado do mundo material, de suas questões, da nossa realidade. Mesmo que se esforce muito para nos fazer imaginar um conflito nas paisagens americanas de hoje, tudo que ele consegue é se distanciar mais do mundo real a cada cena.