Escrito e dirigido pelo experiente Luiz Rosemberg Filho, cineasta cuja carreira teve início no final da década de 1960, “Guerra do Paraguay” não é exatamente um filme sobre o conflito que envolveu Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai entre os anos de 1864 e 1870. Apesar de ambientada imediatamente após o fim da guerra, sua história, que acompanha o encontro de duas artistas mambembes, mulheres do presente, com um soldado do exército brasileiro recém-vitorioso contra as forças paraguaias, é construída na verdade como um virulento embate entre arte e brutalidade, opondo-se, assim, às guerras em geral.
Não é à toa que Rosemberg dedica “Guerra do Paraguay” a dois outros filmes, inspirações para seu trabalho: “Dr. Fantástico” (1964), de Stanley Kubrick, e “Tempo de Guerra” (1963), de Jean-Luc Godard. O primeiro, realizado por Kubrick no auge das tensões entre Estados Unidos e União Soviética na Guerra Fria, destila sarcasmo ao apresentar uma situação que parecia bastante possível naquele contexto: a explosão de uma guerra nuclear entre as duas superpotências, a partir da iniciativa de um militar norte-americano paranoico com a ameaça comunista. A partir daí, seguem-se trapalhadas na “sala de guerra” do governo dos Estados Unidos, onde o presidente, seus secretários e o alto escalão das Forças Armadas se reúnem para tentar consertar o estrago feito.
Já “Tempo de Guerra” conta a história de dois jovens que se alistam para lutar na guerra (Godard não especifica de qual conflito está tratando, mantendo, assim, um discurso crítico a todos eles) após serem seduzidos por promessas de riqueza e aventuras ao redor do mundo. E os protagonistas de fato viajam para diversos países, nos quais perseguem e matam guerrilheiros e civis inocentes, pilham cidades e, também, se divertem, tendo, por exemplo, seu primeiro contato com o cinema. Não obtêm, no entanto, nenhuma fortuna.
“Guerra do Paraguay” dialoga explicitamente com ambos os filmes. Seu personagem militar (Alexandre Dacosta), condecorado pelo desempenho contra os paraguaios no campo de batalha, fala da guerra como algo sublime, da destruição de vidas inimigas como meio de glorificação da pátria. Ele pode, nesse sentido, ser colocado ao lado dos generais de “Dr. Fantástico” Ripper (Sterling Hayden) e Buck (George C. Scott). O primeiro é movido por essa mesma visão da guerra, esse mesmo desejo de exterminar seus inimigos, e é ele quem dispara o apocalipse atômico do filme; já o segundo, conselheiro do presidente norte-americano, é apresentado por Kubrick como uma figura patética, mas cujo poder se liga diretamente à potência sexual. Em sua primeira cena, Buck surge de roupas íntimas, no quarto, com uma amante bem mais jovem. Ao mesmo tempo que exerce um poder que é também sexual (muito possivelmente decorrente de sua posição política), ele demonstra certa propensão ao ridículo. De “Tempo de Guerra”, por sua vez, o militar de “Guerra do Paraguay” tira sua condição de soldado raso, esfarrapado, reprodutor de uma lógica da qual, no fim das contas, é também vítima. Nesse sentido, ele está bem distante dos generais Ripper e Buck.
É interessante observar como a citada aproximação entre belicismo e sexualidade masculina atravessa “Dr. Fantástico” (ela aparece com força, por exemplo, nos créditos iniciais, acompanhados por imagens de aviões militares abastecendo, ou copulando, no ar) e é retomada em “Guerra do Paraguay”. Rosemberg constrói toda a lógica de seu filme a partir da oposição entre a virilidade bélica e destrutiva do personagem masculino, militar, e a feminilidade criativa e criadora das mulheres artistas (Patrícia Niedermeyer e Ana Abbott). Não é por acaso que, no fim, o homem se sobrepõe à mulher justamente por meio de ações violentas (um assassinato e um estupro) – ao que se seguem imagens da destruição provocada por diversas guerras ao longo do século XX, numa compilação que se assemelha muito àquela de explosões atômicas que encerra “Dr. Fantástico”.
Kubrick abordou a temática da guerra com olhar extremamente crítico em outros momentos de sua carreira – em “Medo e Desejo” (1953), “Glória Feita de Sangue” (1957) e “Nascido Para Matar” (1987) –, bem como o lado patético do homem nas relações que estabelece em busca de honra e glória, sendo o conflito armado, frequentemente, um caminho encontrado para isso – “Barry Lyndon” (1975), que tem parte de sua narrativa ambientada na Guerra dos Sete Anos, é um bom exemplo. Em todos esses casos, mais do que comentar criticamente guerras específicas, o cineasta buscou construir um discurso antibelicista. É o que também faz Rosemberg em “Guerra do Paraguay”. A escolha por ambientar o filme no contexto do conflito entre Brasil (com apoio de Argentina e Uruguai) e Paraguai se deu, provavelmente, por ele ter exercido importante papel na constituição da ideia de nação brasileira, após séculos de fragmentação política e identitária. Tal escolha permite ao diretor se afastar de qualquer necessidade de rigor histórico, promovendo contato entre diferentes temporalidades e fazendo de “Guerra do Paraguay” o que Robert Rosenstone define como filme histórico inovador, já que criado “conscientemente para contestar as histórias perfeitas de heróis e vítimas contadas pelos longas-metragens e documentários clássicos”, buscando “um novo vocabulário para representar o passado na tela” com o intuito de “tornar a história […] mais complexa, interrogativa e autoconsciente”.
E Rosemberg é, de fato, um cineasta adepto do antinaturalismo, de narrativas que rompem com a dramaturgia clássica. Trata-se de uma obra que, iniciada em outro momento da história cinematográfica brasileira, no qual o recurso à alegoria e a rupturas estéticas visando construir discursos políticos agressivos, incômodos, era algo relativamente comum – vide a força do Cinema Novo em sua vertente mais radical, liderada por Glauber Rocha, e do chamado cinema marginal, do qual Rosemberg é filho legítimo –, ganha novo capítulo no século XXI, mantendo espantosa, e admirável, coerência.