Hellboy

Hellboy

Boas ideias que acabam desperdiçadas por um roteiro que despreza o drama

Matheus Fiore - 8 de maio de 2019

O primeiro Hellboy, de 2004, foi muito beneficiado pela construção de mundo feita por Guillermo del Toro e toda a equipe de direção de arte do filme. Apesar disso, a obra que levou o personagem dos quadrinhos à telona pela primeira vez não foi um acerto retumbante: é um longa muito prejudicado pelo excesso de personagens desinteressantes e esquemáticos. O agente Myers (Rupert Evans), por exemplo, não só parece não se encaixar em praticamente nenhuma cena da trama, como também existe apenas para ser o meio-de-campo entre o público e o enredo, estando presente em diversos momentos apenas para que del Toro mastigue o máximo de informação possível em nossos ouvidos.

A continuação de 2008, Hellboy 2: O Exército Dourado, corrige de forma exemplar esse problema. É, mesmo que longo, um filme mais focado. A trama principal é apresentada em um belo epílogo e é desenvolvida, posteriormente, cena a cena. O filme também merece elogios por, entre outras coisas, conseguir adicionar alguma complexidade à jornada de Hellboy, já que o personagem passa a questionar a natureza de seu trabalho – afinal, é um “monstro” caçando outros “monstros”, pois aos olhos da sociedade, ele não difere em nada dos seres malignos que caça.

Apesar do sucesso, a saga de del Toro não teve continuidade. Chegamos, então, a 2019, mais de uma década depois, e cabe a Neil Marshall dirigir o remake homônimo de Hellboy. Dessa vez, o papel do diabo vermelho cai nas mãos de David Harbour (de Stranger Things). É interessante que Marshall repita algumas questões levantadas por del Toro e até as expanda, mas que tenha uma abordagem bastante diferente da dos dois longas-metragens anteriores. Se elogiei o fato de O Exército Dourado trabalhar, cena a cena, o desenvolvimento da história, a estrutura do novo Hellboy muito se assemelha a de um videogame, já que há um total desprendimento de uma lógica narrativa por traz de cada segmento.

O novo Hellboy herda de seus antecessores o drama pessoal principal inerente à presença de Hellboy no mundo humano: o personagem está sempre em conflito com o fato de enfrentar monstros sendo que, sob a perspectiva humana, ele próprio é um desses monstros. Neste novo Hellboy, é estabelecido desde o começo o conflito existencial do personagem, que nasceu para destruir o mundo que, hoje, protege.  Esse conflito, infelizmente, não é bem desenvolvido pelo roteiro de Andrew Cosby. Hellboy parece se contentar com o apontamento das questões, mas nunca as discute ou traz alguma profundidade. Quando o protagonista pergunta ao seu pai (um Ian McShane tristemente desperdiçado) o que o fez adotar o personagem, a resposta dá a sensação de que nem mesmo os roteiristas sabem o que fazer com o personagem. Ali, cria-se a necessidade de um elo emocional entre pai e filho que não existe antes e nem depois do conflito.

Hellboy, porém, não tem só pontos negativos. O filme abraça um estilo um tanto quanto caricato e aproveita bem desse verve. Se nos filmes de del Toro, o estilo piadista de Hellboy era uma característica própria do personagem, no de Marshall, toda a narrativa parece a todo momento amenizar seus conflitos com o humor. Desde os personagens mais grotescos e cruéis, como a bruxa Baba Yaga e a vilã Nimue, até os ajudantes do herói, Alice e Daimio, todos trazem alguma pitada de comédia para a aventura, o que evidencia a ideia de que a obra não se leva a sério como aconteceu nas mãos de del Toro.

Aliás, falando de Alice (uma médium que foi salva por Hellboy quando criança) e Daimio (um agente secreto que embarca na aventura para ajudar o herói a salvar o mundo), é interessante como por eles podemos compreender melhor o total desprendimento do filme de uma lógica narrativa mais coesa. Marshall constrói seu Hellboy com uma estrutura de games: cenas isoladas que parecem não se importar tanto com as lógicas estabelecidas previamente e nem em preparar o terreno para o que virá depois. A dupla mencionada surge espontaneamente, mas já quanto o filme tem sua trama estabelecida, como se fossem NPCs desbloqueados por um novo mapa. Sua aparição é pouco orgânica, também pelo fato de as histórias desses personagens só serem contadas mais tardiamente, por meio de flashbacks.

Essa lógica de videogame resulta em muitas características peculiares. O desprendimento de uma organização geral, apesar de criar um certo caos no desenvolvimento dramático do filme – o pai de Hellboy constantemente o manda para missões suicidas e nos faz pensar até mesmo se ele não quer, secretamente, que seu filho morra –, ajuda a desenvolver essa aura de videogame almejada por Marshall. É como se cada “mapa” visitado fosse uma fase, com direito a curtas missões e chefões. Algumas funcionam, como a chegada de Hellboy à Escócia, mas a maioria acaba apenas repetindo fórmulas e acrescentando poucas novidades.

Essa gameficação da obra parece ocorrer de maneira consciente, ao ponto de o filme ter fases “bônus” que trazem a relação de conquista e recompensa e inclusive lembram as famosas fases das esmeraldas de Sonic: The Hedgehog. O problema é que, por ter essa aposta em cenas isoladas, Hellboy deveria, no mínimo, fazer com que todas essas cenas fossem eficientes de maneira individual, o que não acontece: há muitos momentos desperdiçados e travados pelo excesso de flashbacks e dramas subdesenvolvidos. O filme sofre por ter muitas cenas que exigem um apelo emocional não estabelecido previamente, o que faz com que qualquer aspiração dramática seja tão falsa quanto um jato de sangue digital.

Muitas das cenas de Hellboy sucumbem também por sua má montagem, que picota a ação e apressa os acontecimentos ao ponto de esvaziar qualquer potencial dramático deles. Há, por exemplo, no ato final, a introdução de um conflito que é tratado como algo importantíssimo, mas que é resolvido em questão de segundos… Nesses momentos, fica impossível não lembrar do segundo Hellboy de del Toro: a perfuração no peito do protagonista causada pela lançaa do vilão não só não é resolvida rapidamente como, na verdade, acaba se tornando um gatilho do roteiro para conduzir a trama para um novo cenário, com novos acontecimentos e personagens.

Os que entrarem no cinema esperando algo que honre a saga de del Toro, muito provavelmente sairão decepcionados. O Hellboy de Neil Marshall troca, sem receio algum, as belas fantasias e complexos trabalhos de maquiagem pela digitalização da imagem. É, claro, um sintoma dos blockbusters de hoje, mas é também uma ideia coerente se analisarmos a obra sob o mencionado recorte da gamificação. Saem a fantasia e a mitologia, entram o gameplay e uma violência gráfica mais focada no choque visual. Uma pena que, mesmo que bem intencionado, Hellboy valorize tão pouco os dramas de seus personagens, pois no final, é neles que o roteiro tenta se ancorar para entregar um clímax impactante.

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