Hereditário

Hereditário

Matheus Fiore - 19 de junho de 2018

A trilha sonora de “Hereditário” talvez seja o aspecto mais propenso a polarizar as discussões sobre o filme. Por muitos, o trabalho de Colin Stetson será considerado exagerado, forçado; por outros, será visto como um meio essencial para alcançar uma tensão ininterrupta – que também se deve a uma inteligente escolha de planos que valorizam olhares, e ao constante uso de travellings que insistem em nos aproximar de personagens e situações extremamente incômodas. Isso se deve ao fato de Stetson manter uma música densa, que progressivamente busca o clímax em vários momentos, digamos, incomuns. Diferente do que podemos esperar de um filme de terror, aqui a música está mais presente quando nada de sobrenatural ou assustador acontece. Isso, claro, não é uma escolha a esmo, vazia; “Hereditário” precisa disso, pois, por trás dos sustos e medos, discute os demônios criados pelas relações familiares. É um filme que, sim, em certo ponto, abraça o gênero e seus clichês, e para de aprofundar sua trama, mas, na maior parte de sua metragem,tem algo a discutir.

“Hereditário” divide-se peculiarmente na forma como utiliza tais ferramentas cinematográficas. Durante a primeira metade da projeção, quando a obra trabalha muito mais no campo do mistério, a música de Stetson está sempre presente. É como se o objetivo fosse não só deixar o espectador tenso, mas prepará-lo para a segunda metade. E o mais interessante é que, quando esta segunda metade chega, o cinema de “Hereditário” é muito mais cru. Faz-se uso do silêncio, dos sons da casa, de respirações. Além disso, podemos destacar que o clímax do filme é construído quase inteiramente em um ambiente escuro, como se o grande medo que podemos sentir ali não fosse de algo concreto, mas sim da impossibilidade de sabermos o que vai acontecer.

Essa dúvida paira sobre nossas mentes por boa parte da obra. Afinal, o objetivo é nos manter sempre em dúvida quanto à natureza dos elementos supostamente sobrenaturais que vemos aqui e ali. E para manter essa dúvida, o roteiro e a direção Ari Aster são essenciais. Há, por exemplo, o uso do foreshadowing, que consiste em dar pistas fragmentadas de acontecimentos que ainda estão por vir na trama. Nos dois primeiros atos, inúmeras pistas são plantadas, e, quando a primeira se concretiza, é justamente no momento de maior peso dramático para o filme, quando há uma tragédia familiar. A partir dali, passamos a temer que todas as outras “previsões” se concretizem.

Enquanto não embarca na viagem do ato final, momento em que responde a todas as perguntas e revela seu desfecho, “Hereditário” trabalha seus personagens de forma eficiente. É um filme sobre os demônios interiores de seus personagens, sejam eles oriundos de experiências em vida – um dos personagens não consegue confiar em sua mãe por um trauma da infância –, ou por uma “herança maldita” deixada pela família – um histórico de transtornos mentais assombra o elenco principal. No foco da família, está Annie (Toni Collette), que precisa, ao mesmo tempo, passar pela fase de luto após perder sua mãe e recompor-se para manter sua família (marido, filho adolescente e filha criança com problemas mentais) unida.

O maior acerto de “Hereditário” é, assim como fez o sul-coreano “O Lamento”, saber enganar seu público. Há inúmeros elementos que apontam para dois caminhos distintos. Por um lado, o histórico de esquizofrenia na família se junta ao passado de sonambulismo para criar a possibilidade de, na verdade, os vestígios de sobrenaturalidade serem delírios dos personagens – e a dúvida permeia toda a projeção. E, para isso, é essencial o trabalho de montagem de Jennifer Lame e Lucian Johnston, que não só utilizam cortes secos para alternar pesadelos com realidade, como também empregam elipses para saltar do dia para a noite em planos “gêmeos”, que diferem apenas pela hora do dia. Um personagem na mesma posição é filmado à noite, e, em uma rápida elipse, o vemos em uma mesma posição, mas durante a manhã. Há, portanto, a eterna dúvida de se estamos ou não assistindo a delírios de uma mente perturbada.

Do outro lado da moeda, está o sobrenatural. Esse elemento, mesmo que construído com muito mais sutileza, se mostra tão forte dramaticamente quanto a outra possibilidade – a de ser tudo um delírio de uma mente perturbada. Há, porém, uma maior dificuldade de tornar o sobrenatural palpável para o espectador. Há muitas referências mitológicas, como a história de Ifigênia, e até referências a autores notórios por escreverem tragédias sobre paixão e destino, como Sófocles.

Apesar de, a partir de certo ponto, “Hereditário” só seguir um dos modelos, a relação da narrativa com um estudo sobre herança familiar permanece. A maioria dos problemas que ocorrem na rotina da família protagonista são originados pela desconfiança e desafeto construídos ao longo do tempo. Mesmo que sejam raras as vezes em que os personagens são completamente transparentes nas discussões com seus parentes, há sempre a noção de que há mágoas não resolvidas.

Partindo da ideia de que a obra gira em torno dessas mágoas, é interessante analisar alguns aspectos específicos do filme. Annie, a mãe, por exemplo, trabalha construindo maquetes, modelos em miniatura de casas. Obviamente, Annie faz várias maquetes de ambientes comuns de seu dia-a-dia – há desde os cômodos de seu quarto até a igreja onde ocorreu o velório de sua mãe.

Com a relação entre Annie, as maquetes e sua família, “Hereditário” nos permite fazer várias interpretações sobre como ela tenta, em seu ofício artístico, construir um lar perfeito e sob seu controle, algo que fracassa quando tenta na vida real. Aliás, essa relação de poder e maquetes muito lembra “O Iluminado”, de 1980, que também traz, em uma cena, um chefe de família observando uma maquete de um lugar real do universo do filme – no caso, o labirinto do Overlook Hotel, observado por Jack Torrance em certo momento da trama.

É também elogiável que, em alguns momentos, elas sejam carregadas de simbolismo. Um dos momentos de maior destaque é quando a câmera passeia pela casa e, de forma discreta, mostra uma maquete que traz uma casa com vários outros modelos encaixados por baixo, fazendo referência a tudo que os personagens guardam em seus inconscientes.

A referência pode ser gratuita, mas “Hereditário” tem muito do filme de Stanley Kubrick. Annie é uma personagem com dilemas similares ao de Jack Torrance: ambos perdem, aos poucos, a sanidade e o controle sobre a família, o que os faz agir de forma agressiva, quase como se inconscientemente eles tivessem a necessidade de manter controle sobre os parentes.

“Hereditário” é um bom terror por conseguir manter paralelamente uma análise psicológica de seus personagens e uma porta aberta para elementos sobrenaturais. Mesmo que nenhum dois dois seja aprofundado devidamente – a impressão que fica é que o filme, em muitos momentos, está mais interessado em ser imersivo e assustador do que em trabalhar as ideias que guiam a narrativa –, as alegorias e referências tornam a experiência tão assustadora quanto instigante.

Essa dificuldade de aprofundar os dois caminhos (o patológico e o sobrenatural) também parte do fato de o filme ter um problema sério de foco em personagens. A primeira metade da obra é focada demasiadamente em Annie – e aqui, a atuação de Toni Collette merece elogios por conseguir tornar palpável cada sentimento expresso por sua personagem ao criar reações físicas para cada nuance emocional. Quando compramos o drama da personagem, porém, há uma subversão, e a narrativa passa a focar em seu filho, Peter. Há, portanto, uma quebra de rumo, e somos obrigados a criar outro investimento emocional, o que poderia ser corrigido ao administrar as duas trajetórias de forma paralela.

Bem distante das polarizadas primeiras reações, “Hereditário” não é um desastre, nem a nova obra-prima do terror e muito menos pertencente a algum novo gênero, como pessoas mal informadas e alienantes podem dizer ao citar o inexistente “meta-terror” – “movimento” cinematográfico que, de acordo com alguns, inova por fazer o que filmes de terror já faziam em “O Gabinete do Doutor Caligari”, de 1920. É um terror feito à moda antiga: constrói seu clima com precisão e esculpe sua forma em prol do conteúdo. Sobrenaturais ou reais, oriundos de uma mente perturbada ou de outro mundo, os demônios de “Hereditário” são reais o suficiente para assombrarem as mentes dos pobres personagens.

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