“Homecoming: a film by Beyoncé” é um documentário que vai além do registro da sua apresentação no Coachella Festival de 2018, onde a diva pop foi a primeira mulher afro americana a se apresentar como atração principal.
Após essa data marcante, como a própria Beyoncé afirma, o festival passará a ser chamado de “Beychella”. “Homecoming”, além de registrar mais de noventa minutos de apresentação no palco, expõe o processo criativo da cantora, dos dançarinos e dos músicos. Vemos também depoimentos da Sra. Carter sobre sua vida pessoal durante o período de criação do show e durante a apresentação.
Resgatando o espírito de coletividade
Elaborado a partir da ideia de um encontro de colegas de universidade, a apresentação resgata a memória da artista e de sua comunidade. A partir do exercício do ouvir, ela transforma seu trabalho em condutor de múltiplas vozes. O figurino, as coreografias, seu time, tudo é produzido minuciosamente. Da mesma forma o é “Homecoming”, o produto posterior desse processo. Ele ilustra o momento e permite que essa grande mulher desabafe.
Beyoncé é muito reservada com relação a sua vida pessoal. Em “Homecoming”, porém, ela resgata a ideia de lar, de lugar seguro, e se permite falar sobre inseguranças e dramas pessoais. Ver a “rainha” abrindo uma brecha da sua vida pessoal é muito gratificante. Ela sai da redoma, de ser intocável, e nos convida a notar sua própria realidade. A cantora se mostra como alguém que passa por desgastes e pode ser insegura, como qualquer pessoa “comum”.
Entre trechos da apresentação, vemos os ensaios e o preparo da equipe, relatos da cantora sobre esse período de sua vida e frases marcantes de intelectuais e artistas negros. A montagem de “Homecoming” carrega em si essa sensação de acolhimento. Mesmo nas sequências em que assistimos ao show, todas aquelas pessoas são um coletivo. Uma colmeia, um quilombo. É Ubuntu, “filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras” (Portal Geledés). Essa tônica pessoal deixa de ser subtexto e se transforma no foco do documentário, sem invalidar a importância da performance, que assim se torna um dos mecanismos de resistência.
Auto-conhecimento e posicionamento
Ao escolher falar sobre o caminho trilhado até “Beychella”, Beyoncé afirma o que observamos desde “Lemonade”: a necessidade de ser explícita e incisiva sobre o espaço da população negra. Desde o lançamento do álbum esse discurso aparece de maneira mais firme. Ainda que não tenha acompanhado sua carreira de perto, como fã, me parecia que a diva era mais uma artista negra que não conseguia transpassar uma barreira. Barreira esta que a mantinha em um local de silenciamento. Decerto mais uma cantora pop moldada de acordo com a necessidade do mercado fonográfico.
“Lemonade” é o marco do momento em que a artista se desvencilha desse mercado. Embora não saia dele, apreende seu poder e pode criar normas próprias. A abertura do documentário é forte e marcante. Naquela marcha imperial, há a prova da ascensão e consolidação da cantora. Ela é a abelha rainha do povo negro estadunidense (e mundial). O álbum é a materialização de um processo longo de autoconhecimento, formação de identidade e sabedoria. Isso é admirável.
“Homecoming”, o segundo marco dessa nova fase
O renascimento de uma mulher, mais consciente, mais forte, faz com que ela deseje oferecer o mesmo aos seus seguidores. Em todo o decorrer de “Homecoming”, Beyoncé afirma o quanto quer que seus fãs, que os espectadores do festival, ou que qualquer pessoa negra assistindo à apresentação, não importa quando, se sinta representada. E isso é conseguido no corpo de sua equipe, escolhida para ser diversa e representativa.
Assistir a esse registro foi tocante em vários momentos. Me enxerguei na prática de conhecer e entender minha identidade, minha origem. Em um movimento de sororidade, “Homecoming” pôde ofertar essa experiência às mulheres como eu e explicar, mesmo aqueles que são diferentes, o quanto isso é necessário para sermos mais fortes.
“Homecoming” não é Beyoncé como uma unidade, como um corpo isolado. É um organismo que se movimenta, que se exprime junto. É Angela Davis dizendo: “quando uma mulher negra se movimenta, toda a sociedade se move com ela”. Vida longa a rainha!