Na última década, os irmãos Josh e Benny Safdie conseguiram como poucos estudar a relação de seus personagens com os espaços geográficos e sociais que os cercam. No ótimo “Heaven Knows What”, de 2014, os cineastas apresentam um mumblecore no qual viciados em droga perambulam por Nova Iorque enquanto correm atrás da próxima dose para manter seu vício. O que a dupla alcança com esse filme, porém, vai além do mero retrato da marginalidade; Josh e Benny nos jogam em um universo cinematográfico de conflitos de classe, de segregação, no qual os viciados estão não só à margem da classe média, como também do próprio espaço físico onde habitam, algo muito bem retratado pelas recorrentes cenas de personagens sendo expulsos de lugares e pela profundidade de campo pequena, que destaca os corpos em relação aos cenários e deixa os sujeitos quase em um plano separado do mundo.
Já em “Bom Comportamento”, o mais popular filme da dupla, protagonizado por Robert Pattinson e pelo próprio Benny Safdie, os cineastas também utilizam essa marginalidade dos personagens para retratar a exclusão em Nova Iorque e o parasitismo no capitalismo. Acompanhamos sempre as viagens de Connie (Pattinson) para livrar seu irmão caçula (Benny) da cadeia, utilizando as pessoas ao seu redor para chegar a esse objetivo. Mas, em “Joias Brutas”, Josh e Benny estão interessados em explorar novas formas de brincar com a relação de seus personagens com o mundo que os cerca. Agora retratando o dono de uma joalheria que vive em busca do próximo lucro para quitar antigos débitos, os irmãos Safdie apresentam um personagem que se recusa a viver no presente e utiliza sempre as apostas e o próximo golpe para seguir sua vida, abdicando do hoje para planejar o amanhã.
Dessa vez, portanto, os cineastas buscam a relação de um protagonista não com espaços ou classes, mas com o capitalismo e suas ilusões. Howard constantemente põe de lado o agora, mesmo que este o ameace fisicamente, para apostar tudo o que tem no que vem depois. Howie, como é carinhosamente chamado por sua amante, está sempre atrás do dinheiro, mas, curiosamente, os Safdie só nos mostram o dinheiro quando este está saindo das mãos de Howard para outras pessoas ou através de fotos do iPhone do protagonista. O interessante dessa relação de Howard com o mundo – e principalmente com o tempo – é perceber como os Safdie e Adam Sandler esculpem um personagem que parece nunca compreender o peso e as consequências de seus atos. Mesmo que esteja em iminente risco de vida e precise decidir entre uma solução fácil e enrolar-se em novas apostas, ele sempre escolherá pelo risco. Howard é um personagem tão ansioso e inconsequente quanto confiante em suas jogadas.
Ainda trabalhando o espaço – assim como em “Heaven Knows What”, em “Joias Brutas” o protagonista está sempre sendo barrado ou expulso de ambientes –, mas acrescentando a relação com o tempo, os Safdie expandem seu escopo de estudo social para algo um pouco mais existencial. Quando Howard tem qualquer tempo para descansar e repensar sua vida pessoal, a resposta incorre sempre no problema do tempo; o joalheiro está, ao passo que tentando dominar o amanhã para alcançar o “sucesso”, vivendo as consequências do ontem, que ditam sua vida não só pela questão profissional – os já mencionados perseguidores que podem a qualquer momento assassiná-lo –, como também pessoal – a esposa que não mais sente prazer em sua companhia.
Uma escolha que diferencia “Joias Brutas” das obras dos Safdie citadas é o fato de o filme ter, como introdução, uma cena fora da bolha americana onde o restante da narrativa está ambientada. Boa parte da narrativa de “Joias Brutas” gira em torno de uma opala rara obtida por Howard que está para ser leiloada. Essa primeira cena mostra de onde ela veio: da exploração de minas na Etiópia. Não por acaso, a transição feita digitalmente que conecta a Etiópia à Nova Iorque muito se parece com um portal que nos guia por uma viagem interdimensional, uma mudança de um universo para o outro. Sai a crueldade e a violência que sustentam o capitalismo, e entra a ilusão com a qual o capitalismo mantém a sociedade atordoada.
Esse atordoamento é algo constante na filmografia dos diretores, mas não fora explorado com a mesma complexidade nas obras recentes. Os Safdie, então, dão um passo para trás para, à frente, imprimir maior peso aos acontecimentos da rotina de Howard. O personagem só é capaz de sair da bolha americana e entrar em seu próprio portal quando essa violência do mundo material o arrebata. Mesmo que, por boa parte dos 130 minutos, “Joias Brutas” nos insira na hipnótica e acelerada narrativa do homem que vive de golpes para garantir sua existência no futuro, a abertura e a conclusão da obra estão lá para pontuar como, para o capitalismo existir e se manter, a violência e a segregação são alicerces fundamentais. Howard é tanto uma vítima quanto um assistente dessa lógica de mundo; é um homem que, atordoado pelos arredores, mal consegue perceber que crê tanto no futuro que esquece do presente, e também não percebe que o que o move são ilusões do presente e fantasmas do passado.