Apesar de ser uma história sobre um “Judas”, não há nenhum direcionamento maniqueísta da narrativa de Judas e o Messias Negro em se comportar como um “tribunal de justiça”, que poderia usar o Cinema como veículo para fazer uma condenação social de um homem já morto. Não há apontamento de dedos óbvios na direção de Bill O’Neal (Lakeith Stanfield), homem negro que se infiltrou nos Panteras Negras, a mando do FBI, e teve participação indireta na morte do líder Fred Hampton (Daniel Kaluuya). Ao invés disso, o filme caminha no sentido de explorar a ambiguidade do personagem: em que momentos ele está interpretando um Pantera Negra e em que momentos ele é, de fato, um Pantera? Em uma das melhores cenas da obra, a que se passa na Igreja quando Hampton volta da prisão, estaria O’Neil verdadeiramente vibrando mesmo com o discurso para as massas ou é só mais uma atitude de seu personagem? Ao longo das duas horas de duração, não há uma resposta contundente, mas se trabalha em cima de uma zona cinzenta, já que nem o próprio protagonista parece saber mais o quem ele é, quando ele está atuando ou não.
Neste sentido, a suposta “falta de profundidade” do personagem, provocada por uma narrativa marcada por elipses que não dão a chance melhor de conhecê-lo, só favorece essa ideia geral em trabalhar nesta linha tênue entre o que é real e o que é interpretado. Se não há momentos da vida de O’Neil fora dos Panteras Negras ou das suas conversas com o homem do FBI, sua vida se resume a este jogo de toma-lá-da-cá. Aliás, a única concessão está quando se vê um pesadelo dele, no qual ele é assassinado por um duplo seu que teria descoberto sua infiltração. Ainda nesta cena, não é possível tirar conclusões sobre os ideais do protagonista, mas somente que ele carrega o medo de ser flagrado (consequentemente, morto), está marcado pela culpa e que sua personalidade está cada vez mais repartida ao meio, com o sonho chegando a separar em duas pessoas o O’Neil membro do Pantera Negra e o O’Neil policial usando roupa de detetive.
Sem dúvidas, grande parte dessa dubiedade também passa por um primoroso Lakeith Stanfield, que consegue criar um personagem pulsante e multifacetado. O ator faz muito bem o papel um homem despolitizado, desinteressado nos ensinamentos da sala de aula, que carrega uma malandragem no riso de canto da boca, uma soberba e ganância quando ganha bens materiais (o carro; o dinheiro sujo do FBI), mas que ora também permite que surjam sorrisos e olhares quando convive com os Panteras, além de uma raiva no olhar conforme ele acompanha os poderosos discursos de Hampton, indicando uma possível identificação e assimilação da causa negra. Nunca entende exatamente as ações e intenções do personagem, mas Shaka King acerta ao não criar uma falsa dialética que poderia cair facilmente no direcionamento de botar um homem negro como o grande culpado pela morte de Hampton. Ao invés disso, o Judas é claramente um peão manipulado por homens brancos engravatados, preso numa espiral de ações que ele mesmo criou e não consegue se desvencilhar, igualmente sendo movido por uma ganância como lógica de um sistema capitalista. Há no filme, um momento em que Hampton discursa para rednecks e fala, em linhas gerais, que quando todos estão pobres, o principal inimigo se torna a fome e a sede, não havendo diferenças políticas nesta hora. Se essa fala serve para convencer os rednecks vivendo em dificuldade à se juntarem a ele, ela também funciona para o instinto de sobrevivência de O’Neil, que, diante do medo da morte e a vontade de subir na vida, coloca seus interesses na frente de sua identificação com os Panteras e seu socialismo.
Já por um outro lado, se a direção de Shaka King está muito interessada nas supostas “camadas de interpretações” de O’Neil, seu olhar para o “Messias Negro”, Fred Hampton, também parece trabalhar esse aspecto. Porém, diferente de “Judas”, não vemos Hampton vivendo apenas entre o FBI e os Panteras, mas progressivamente vão sendo mostrados momentos em que dão uma ideia de humanização daquela suposta figura messiânica, seja acompanhando seu relacionamento amoroso ou como no encontro com sua mãe. Aqui, cabe apontar que nos créditos finais é lembrado que ele tinha apenas 21 anos ao tempo de sua morte, sendo apenas um garoto. É por esse motivo que a escolha de Kaluuya, um ator de 32 anos, parece muito propícia para esta ideia geral de “interpretações”: Hampton passava uma imagem muito mais madura e firme, de um homem completo, do que se poderia esperar de alguém com sua idade. Seria Hampton também um ator, uma imagem construída?
Por exemplo, um momento mais natural de Hampton, que condiz com um rapaz de 21 anos, é aquele em que acontece o primeiro beijo com sua futura mulher, no qual sua timidez se faz visível. Quem diria que aquele homem tão seguro no palco e com suas palavras seria tão sem jeito com mulheres? O que acontece é que Fred criou (ou deixou criarem) uma imagem de algo que vai além de sua pessoa, de um líder messiânico sem vulnerabilidades. Afinal, é justamente isso que seu povo precisava naquele momento, de uma imagem inabalável que atraísse gente para a causa, de um novo Messias. Entre os tantos close-ups que King emprega na direção — porque ele definitivamente está mais interessado em explorar a imagem de Hampton, o quão inabalável é aquela máscara enquanto discursa — o mais marcante é aquele em que vemos Fred pela última vez: dormindo, sorrindo e provavelmente sonhando. Ou seja, aquele rosto que no filme inteiro é marcado pela determinação, pelo foco e a seriedade, pronto para a guerra, está verdadeiramente desarmado pela primeira vez. Interpretando o papel de um líder 24 horas ao dia, Fred foi morto no único momento em que ele estava sendo aquilo que realmente era: um menino que sonha.
Inclusive, indo para além dos dois protagonistas, é até possível identificar uma tentativa do longa-metragem em trazer esse mote central ao agente do FBI, Roy Mitchell (Jesse Plemons). Isso parece visível na cena em que J. Edgar Hoover (Martin Sheen) tenta deixá-lo desconfortável ao indagar o que ele faria se sua filha, ainda uma bebê, trouxesse um namorado negro para casa, quando fosse mais velha. Nessa situação, parece haver uma clara relutância do personagem de Plemmons, visivelmente desconfortável, como se ali ele estivesse vendo o quão longe tinha ido o preconceito de seu chefe. Por outro lado, não há dúvidas ao longo do filme que Roy tem atitudes racistas. Logo, mais uma vez, há uma zona cinzenta que deixa em aberto se Roy é só um estereótipo de um racista caricato cego ou se, por estar inserido numa relação de poder, sendo a parte inferior de uma cadeira hierárquica, ele reproduz a imagem de um racista (consequentemente, comportamentos), pois seria exatamente isso que seus chefes esperam dele e é assim que ele mantém seu emprego? Novamente, não há respostas.
Assim sendo, em Judas e o Messias Negro, como o próprio nome indica (o título poderia ser “Bill O’Neal e Fred Hampton”, afinal) pela associação dos dois com outras figuras, os protagonistas estão cumprindo papéis, um de Judas e o outro de Cristo. Conclui-se que o que move a narrativa é um jogo representacional, a partir da (des)construção de imagens e personalidades. Não à toa, a narrativa acaba com a transição do ficcional para o documental, em um paralelismo com a cena inicial, substituindo a imagem de Lakeith Stanfield mimetizando a entrevista real de Bill O’Neal pelo próprio em questão. E vai além: pelo conteúdo do discurso de O’Neal (a pessoa real), poderia até se dizer também que ele mesmo está interpretando um personagem, ao falar sobre atitudes que claramente não condizem com o que aconteceu realmente. No fim, todos foram engolidos por seus próprios personagens.