O inglês Matthew Vaughn, responsável por salvar os X-Men no cinema com Primeira Classe, volta com Kingsman: O Círculo Dourado a uma franquia que pega as convenções de gênero e as joga no lixo. Sua visão britânica sobre as idiossincrasias dos Estados Unidos dá ao filme momentos ora cômicos, ora reflexivos, ora escrachados. Quando beira o brilhantismo, consegue ser os três simultaneamente.
O filme abraça o absurdo com menos vergonha do que seu antecessor. E, mesmo que Kingsman: O Círculo Dourado alterne momentos de gênero ação com outros de comédia em vez de ser um filme de ação executado comicamente como em Serviço Secreto, sua coragem precisa ser elogiada. Vaughn aumenta as apostas, cobre e mostra as cartas. Em nenhum momento, seu filme abre mão de ir ao próximo nível de insanidade, como quando a vilã Poppy (a excelente Julianne Moore), num teste de lealdade, manda um de seus capangas jogar um desafeto no moedor de carne, faz um hambúrguer da carne da vítima, obriga o capanga a comê-lo e ainda pergunta se está gostoso. Apenas para que este responda, assombrado, “delicioso”. Hilário.
Ao antecipar críticas, o roteiro transforma problemas em acertos. Usando frases como “um candidato rejeitado por nós que se tornou um vilão”, expõe um clichê de forma tão literal que faz dele um alívio cômico. O filme também reaproveita personagens de forma criativa, permitindo a Kingsman: O Círculo Dourado, tal qual um time de futebol, “rodar o elenco”. Ganha liberdade para matar muita gente – como morre gente nesse filme – sem comprometer o envolvimento do público com a história. Todos os atores possuem carisma, do ainda desconhecido protagonista Taron Egerton ao muitas vezes inexpressivo Channing Tatum, passando pela já citada Julianne Moore, Michael Gambon e Oberyn Martell Pedro Pascal.
Após um evento que obriga os agentes a acionar seu “Protocolo Apocalipse”, viajam para o Kentucky e conhecem a versão americana da Kingsman, a Statesman. Já nos nomes, o filme mostra seu humor cáustico a respeito dos vizinhos ianques: os britânicos são os “reis”; os americanos, os “políticos”. Se a Kingsman é sediada na capital Londres, a Statesman está no interior. Por fim, mas não menos cômico, os agentes britânicos têm seus codinomes retirados do Ciclo Arturiano (Arthur, Lancelot, Galahad etc.), enquanto os americanos são bebidas alcoólicas. E se o responsável pela inteligência estratégica das missões na Kingsman é conhecido como Merlin (Mark Strong), o profeta e conselheiro do Rei Arthur, a Stateman chama seu profissional equivalente de Ginger Ale, um refrigerante, e delega a função a uma mulher (Halle Berry).
Numa estrutura de três atos, Kingsman: O Círculo Dourado marca as transições de um para o outro com ameaças cada vez maiores e personagens à altura dessa escalada. O plano de Poppy, uma traficante internacional monopolista de drogas, envolve a potencial morte de milhões de pessoas. A forma como o presidente dos Estados Unidos (Bruce Greenwood) lida com a situação é o momento mais engraçado, controverso e reflexivo de todo o filme. Algo que não merece ser sequer mencionado, pois a satisfação de se surpreender no cinema vale mais do que qualquer análise.
Apenas digo que, a partir de certo ponto, comecei a me sentir pessoalmente incomodado pelo excesso de realismo que tamanho absurdo continha. A reação da sala de cinema também me fez pensar se aquelas pessoas estavam rindo da situação, do nível de descaramento dos personagens ou concordando com a “solução” encontrada. Provavelmente, todas as opções. Kingsman: O Círculo Dourado é um filme de sensações corporais tão primitivas que não seria nenhum absurdo se figuras políticas antagônicas como Jair Bolsonaro e Marcelo Freixo vissem o filme juntos e gostassem das mesmas cenas, por motivos completamente antagônicos. Poucos filmes conseguem algo tão difícil parecer orgânico, simples.
O filme também conta com uma investigação pautada apenas em posts do Instagram (falando nisso, já segue a gente por lá?), um sabre de luz em forma de laço de caubói, excelentes rimas temáticas com o primeiro filme, autorreferências descaradamente hilárias, um slogan tão bom que deveria ser usado de verdade, cenas de ação primorosas, com destaque para a luta final, um plano-sequência em close-up com uso extremamente feliz de slow motion e referências a clássicos como Bonnie e Clyde e Dr. Fantástico.
Se nada disso o convenceu, Elton John é um personagem fundamental na história. Interpretado por ele mesmo.