Um diálogo entre as protagonistas ainda na primeira meia hora de Ligadas Pelo Desejo (1996) apresenta a lógica que articula a narrativa. Corky (Gina Gershon) e Violet (Jennifer Tilly) acabaram de transar e estão planejando um golpe. A primeira propõe uma comparação entre o sexo e o ato de roubar: “Para mim, roubar sempre foi bem parecido com sexo. Duas pessoas querem a mesma coisa: elas entram num quarto e falam sobre isso. Elas começam a planejar. É mais ou menos como flertar. É como as preliminares, porque quanto mais você fala nelas, mais molhada você fica. A única diferença é que eu posso foder alguém que acabei de conhecer. Mas roubar? Eu preciso conhecer a pessoa como conheço a mim mesma.”
O primeiro ato de Ligadas pelo Desejo é todo direcionado à sedução. O tesão que Corky e Violet sentem uma pela outra contagia as imagens criadas pelas diretoras e roteiristas Lana e Lily Wachowski e qualquer resquício de trama, inclusive daquela relativa ao universo criminoso que circunda as protagonistas, é tratado como secundário. O sexo vem, em cenas com uma mise en scène que valoriza cada movimento dos corpos das duas mulheres sem fetichizá-los individualmente. É o encontro deles que realmente importa.
E por mais que ambas as personagens sejam construídas em diálogo com códigos do noir – elas são femmes fatales, ainda que Corky também encarne a figura do típico protagonista do gênero, o sujeito ferrado na vida e adepto de certa amoralidade –, Ligadas Pelo Desejo jamais deixa de positivá-las diante de um mundo masculino destrutivo e patético. Não há qualquer brecha para atribuição de vilania às personagens, algo que costuma emergir com mais facilidade no cinema noir tradicional, mesmo com toda a ambiguidade que o caracteriza.
Mas o golpe planejado, a princípio mero acessório narrativo, ganha centralidade na segunda parte do filme, depois que as protagonistas já se conhecem na cama. Chega o momento de promover outro tipo de conexão entre elas, que, conforme defende Corky, exige um conhecimento mais íntimo, que vai além do sexo. As Wachowski então dedicam todo o resto de Ligadas Pelo Desejo às minúcias da concretização e consequências do plano arriscado das protagonistas. E se esbaldam nisso.
A analogia do sexo com o crime é transposta para a forma do filme, aproximando o prazer corpóreo do narrativo. Os sucessivos obstáculos interpostos a Corky e Violet e a construção cuidadosa de cada sequência em que eles surgem funciona como preliminares que antecedem um orgasmo muito esperado. Momentos como o da realização do golpe enquanto seu passo a passo é descrito por Corky, o do confronto indesejado entre Caesar (Joe Pantoliano) e os mafiosos e o da visita de dois policiais a um apartamento cheio de cadáveres são organizados segundo uma lógica de sucessivos adiamentos do clímax para atiçar o prazer espectatorial.
Quando o ápice enfim chega, é em grande estilo. Abatido a tiros por Violet (a mulher antes submissa), Caesar explode em sangue sobre a tinta branca (sêmen?) derramada no chão. Até pode haver nesse encontro de fluidos abertura para uma leitura que aproxima a sexualidade masculina da morte, contraposta ao desejo libertador entre duas mulheres. Mas o principal no epílogo de Ligadas Pelo Desejo é sua concepção extremamente prazerosa, que emerge de um tratamento visual estilizado, icônico, orgástico. O cinema em si como gozo.