Plano Aberto

Logan

A grande esperança dos fãs de quadrinhos era ver uma adaptação que bebesse da fonte da excelente Velho Logan, escrita por Mark Millar e ilustrada por Steve McNiven entre 2008 e 2009. Para aqueles que acompanham os X-Men no cinema desde 2000, um bom filme já estaria de bom tamanho. Para Hugh Jackman, australiano que deu vida a Wolverine nos últimos 17 anos, uma despedida digna do personagem seria a consagração por um trabalho longevo, competente e muitas vezes prejudicado por produções aquém da expectativa (X-Men Origens: Wolverine está aí para não nos deixar mentir).

Fortuitamente, todos nós fomos surpreendidos por muito mais do que poderíamos esperar.

No futuro hipotético de 2029, Logan trabalha como algo aproximado a um motorista de Uber Black. A cena de abertura, com bandidos tentando roubar as rodas de sua limusine, fala muito do tom do filme: um homem atordoado, desgastado e consideravelmente marcado pelos traumas dos longos anos de sua vida. É também aqui que a censura X (para maiores de 18 anos) dá as caras. Ao contrário de filmes como os da franquia Jogos Mortais, Logan não faz uso da violência como um fim em si, mas um recurso para reforçar a crueza do longa. Na prática, vemos o que seria uma briga do Wolverine sem truques de câmera para esconder o sangue.  Não é algo gratuito, nem extremamente valorizado. É mais um elemento de ambientação para o expectador.

Neste mundo, os mutantes não nascem há 25 anos e os eventos dos filmes anteriores transformaram os X-Men em figuras da cultura pop. Revistas em quadrinhos convivem com os mutantes que as inspiraram. Inclusive, já no material de divulgação do filme, vemos Logan reclamando da falta de acuidade entre gibis e realidade. Eles são celebridades de um passado distante e já esquecido. Neste aspecto, a forma como o diretor James Mangold trabalha os mutantes se assemelha ao trabalho de Alfonso Cuarón em Filhos da Esperança, filme no qual as mulheres perdem a capacidade de engravidar e a espécie está fadada a terminar junto com a atual geração.

O mundo é apocalíptico apenas para os mutantes, por isso as cenas onde Logan está sozinho refletem a falta de perspectiva do próprio futuro.

O surgimento de X-23/Laura tem o mesmo impacto da personagem Kee no filme de Cuarón, pois o surgimento de uma criança mutante é tão surpreendente em Logan quanto uma mulher grávida em Filhos da Esperança. É pedido a Logan que leve Laura para a fronteira com o Canadá, onde ela pode escapar dos funcionários do Projeto Transigen, de quem ela está fugindo. Isso transforma Logan em um road movie, com a fotografia desempenhando um papel fundamental para localizar geograficamente seus arcos. No começo do filme, na fronteira dos Estados Unidos com o México, onde Logan esconde um Professor Xavier com os poderes cada vez mais instáveis e perigosos, a paleta é suja, árida, empoeirada, com muita saturação; conforme chega ao norte, os tons se amenizam, com os azuis prevalecendo. Este é mais um dos elementos que trabalham para a narrativa, enriquecendo-a, mas há mais.

Exemplo de como a fotografia transforma o herói até então tido como imortal numa casca oca de si

Laura confronta seus perseguidores, num enquadramento clássicos dos filmes de faroeste

Mangold realmente soube montar quadros em Logan. Sejam grandes planos abertos perfeitamente enfocados mostrando o distúrbio nos momentos de paz dos protagonistas, ou em planos-detalhe que mostram um Logan trêmulo, com um olhar perdido, e que também reforçam evoluções no relacionamento dele com Laura. As cenas de ação, perfeitamente executadas no filme, alternam câmera na mão com travellings de alta velocidade, guiando o expectador pelo meio de lutas frenéticas, onde muitas coisas acontecem simultaneamente. Em takes explícitos, como membros decepados ou perfurados, faz uso da luz (outro elemento da fotografia) para tornar tudo mais crível e menos “computadorizado”. A isso, ajuda o diretor ter escolhido cortes rápidos, inclusive para reforçar que Logan não é sobre violência.

Sem dizer palavras, Mangold mostra um Logan destruído, quebrado, incapaz de manter as mãos firmes…

… até que a mão de Laura encontre a sua, devolvendo-lhe estabilidade e mostrando que ele não precisa ficar sozinho.

Seria impossível o resultado alcançado sem atuações sublimes do elenco. Logan está doente (algo completamente diferente da solução capenga em Wolverine: Imortal. Desta vez, é algo inventivo e convincente), manca, não consegue manter as mãos paradas. Hugh Jackman deu ao herói até aqui indestrutível uma vulnerabilidade que o identifica com o público. Patrick Stewart rouba a cena em seus diálogos sobre vida, amor e família, sendo de pura poesia a cena em que ele usa seus poderes psíquicos para controlar uma manada de cavalos. Dafne Keen demora mais de meio filme para falar e consegue cativar com gestos e grunhidos até abrir a boca, quando também emociona. A química dela com Jackman é admirável. Boyd Holbrook, que dá vida a Pierce, o principal antagonista do filme, é onipresente como Darth Vader em O Império Contra-Ataca, e o sotaque sulista, lento e polissílabo, dá a seu personagem ares de psicopata. Mesmo Stephen Merchant, com pouco tempo de tela para desenvolver seu Caliban, rende bons momentos como a figura do mutante que reúne poder e fragilidade, esta sendo uma dualidade constante no filme.

É natural também o uso de câmeras subjetivas, dando ao público a visão que cada personagem tem de seu interlocutor durante diálogos

O diretor faz uso de planos contra-plongée, dando imponência a Logan e ressaltando sua fragilidade. Este recurso é muito utilizado também nas sequências de ação.

Logan trata de esperança, que cada personagem alimenta de uma forma particular. Seja a busca por uma chance de recomeçar, de obter perdão ou apenas encontrar a paz no fim, a ação fica em segundo plano numa narrativa extremamente sensível. A intertextualidade com o maravilhoso Os Brutos Também Amam é um indicativo do que ele representa: uma passagem de bastão. Hugh Jackman pode erguer sua cabeça e dizer “eu consegui”. Não existem mais arrependimentos.

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