O mais recente longa da Pixar, Luca, é dirigido por Enrico Casarosa e possui um forte apelo social por tratar do medo do desconhecido e como isso é transformado em preconceito. A animação conta a história do monstro-marinho Luca (Jacob Tremblay), que vive com sua família no fundo do mar. O longa assemelha-se ao saudoso A Pequena Sereia (1989), por também mostrar um protagonista muito curioso a respeito da superfície terrestre. Luca é proibido pela família de sair do seu habitat, mas a sua vontade de desbravar o mundo fala mais alto. Assim, ele conhece Alberto (Jack Dylan Grazer), outro ser aquático, que adora a vida fora da água. No primeiro ato, a direção estabelece a dialética entre tudo o que é conhecido (e, por consequência, bom) e o misterioso (mau). A narrativa segue essa lógica para criar uma forte empatia entre o espectador e os peixes (ou monstros-marinhos, na visão dos humanos). Nas profundezas do oceano, há família e acolhimento. Acima, uma ilha distante e competitividade. Por estarem muito abaixo da superfície terrestre, é imediata a sensação de que os animais marinhos estão ocultos e são inferiores aos seres humanos. Com esses pontos definidos, o longa começa a desconstrução desses valores.
Luca e Alberto decidem se afastar do mar para tentar viver como humanos e ir atrás do grande sonho de liberdade. Para eles, a liberdade tem nome e forma: uma pequena Vespa (motocicleta) que os encanta. Os jovens acreditam que o veículo será capaz de mudar a vida deles, pois só com uma Vespa será possível conhecer o mundo. Mundo que os pais de Luca não queriam que ele tivesse entendimento sobre. Não há apenas o atrito entre o conhecido e o desconhecido. Mas também o conflito geracional, pois é apenas através de Alberto que Luca cria coragem para ultrapassar as barreiras impostas por seus familiares. Quando os dois peixes (transformados fora da água em meninos de verdade – em uma referência à história de Pinóquio) decidem conhecer a cidade e lidar com os humanos, acontece o choque de realidade: a população despreza monstros-marinhos. Mais do que isso, muitos sentem prazer em matá-los. Deste modo, os garotos precisam ficar longe de qualquer gota d’água para não serem descobertos. E aí aparecem algumas contradições.
A estrutura da narrativa não se difere da maior parte dos outros filmes da Pixar. Com um ritmo frenético e algumas piadas, pode ser uma obra para crianças. Mas é, em maior grau, um filme para adultos. Ao mesmo tempo em que trata do medo do desconhecido com leveza, há o medo da violência. Ou melhor, o temor pela própria existência. Luca expõe as consequências desse medo. Se seus pais têm pavor de sair da caverna na água, jamais conhecerão o restante do planeta. Se não fosse pela simpática Giulia (Emma Berman), Luca não teria conhecimento sobre o Sol, as estrelas e a Lua. Iria continuar na ignorância. A população da ilha italiana queria matar os monstros-marinhos porque não os conhecia. Só quando todos veem que os meninos que ganharam a corrida da cidade eram, na verdade, seres do mar, o ódio é deixado para trás. Entretanto, as resoluções parecem apressadas. A questão de Alberto com o pai, por exemplo, é posta de lado em prol da situação de Luca com os seus pais. Alberto serve apenas como alavanca para o crescimento dos outros personagens. O sentimento de medo/ódio das pessoas contra os peixes não é resolvido. É apenas camuflado. O filme lida com diversos preconceitos de forma individual, em vez de enxergar os problemas como um embate coletivo. É claro que se espera um final feliz de um filme da Pixar. Mas, por tentar tratar de questões sérias, falta um pouco de responsabilidade. No final, Luca resolve ir para a escola de humanos e deixar seu lar, trazendo a seguinte indagação: qual mensagem exatamente este filme quer passar?
Sim, é sobre aceitação, vencer preconceitos e perder o medo do desconhecido. Porém, o protagonista deixa seu verdadeiro lar e tenta viver como uma “criança de verdade”. Alguns podem dizer que isso é lindo, pois mostra que ele está ocupando espaços que antes lhe eram negados. Mas a autoaceitação não seria honrar as próprias origens? Pois agora, em uma escola de verdade, Luca terá que se “disfarçar” de humano. Por conta disso, a narrativa se torna contraditória e de desfechos fáceis demais. Não é exatamente uma alegoria às pessoas LGBTQIA+, mas sim a todos os tipos de discriminação. Ainda assim, fica a sensação de que a produção quis examinar de perto um assunto sério, mas sem mergulhar com força nas questões mais profundas da intolerância.