Logo na primeira cena de “M8: Quando a morte socorre a vida” vemos sobre o que o filme de Jefferson De irá tratar. Passamos do protagonista Maurício (interpretado por Juan Paiva), que sai da faculdade e perpassa toda a desigualdade socioeconômica da cidade do Rio de Janeiro. Os conflitos de classe são claros dentro desse meio urbano. Enquanto em sua aula na faculdade de medicina ele tem apenas pessoas brancas a sua volta, cada vez que chega mais próximo de casa, os corpos negros aparecem. Inicialmente, Maurício não questiona esse mundo no seu entorno, enquanto este vai se tornando cada vez mais opressor.
Tudo muda mesmo quando ele se percebe um dos corpos negros que disseca na aula. Aliás, é interessante como o diretor deixa clara a composição dessa realidade da sala de aula como inteiramente branca – desde os corpos, até as macas e a pintura. Os tons de cores diversas estão compostos apenas na roupa dos estudantes e na pele do personagem principal e dos corpos a serem abertos para estudo. A partir desse momento, ele se vê nesse mundo, como um possível corpo também que poderá ser simplesmente colocado como indigente e aberto futuramente para estudos. Assim, inicia uma busca para saber quem seria essa pessoa.
Jefferson De compõe seu longa especialmente pelos cenários. A narrativa é contada muito mais baseada no que poderá acontecer no lugar esses personagens estão do que propriamente por uma encenação “fora do comum”. Isso fica claro quando Maurício, após sair da festa de um amigo na zona rica da cidade, é confundido com um bandido por dois policiais – um deles também negro. O mesmo destaca como ele deveria ficar atento por estar “naquela hora” em “bairro de playboy”. O mesmo também acontece quando, após a aula, dois faxineiros pretos entram para limpar a sala, com o protagonista sendo a única pessoa a falar com eles.
A narrativa de “M8: Quando a morte socorre a vida” vai se consolidando através dessas pequenas construções únicas de universo. O drama de Maurício acaba ficando sempre meio abrupto e suas mudanças de comportamento do mesmo modo. A persistência na busca de entender sobre aquele corpo, que se torna constante ao tentar entender a busca de mães pelos corpos de seus filhos, ganha força nele mesmo. O drama pessoal do personagem vira mais curioso, incluindo um distanciamento com a mãe, como uma forma de resguardar ela para um futuro que poderá acontecer de tudo. Do mesmo jeito ocorre com sua amiga Suzana (feita por Giulia Gayoso) que, por ser branca, é incapaz de entender todas as sensações pelas quais Maurício passa.
A obra até tenta entrar em um âmbito fantástico, chegando a abraçar o terror em algumas cenas (especialmente aquelas dos sonhos). No entanto, Jefferson pauta mais sua trama por uma realidade onipresente, como se, independente de tudo, esses personagens fossem acabar, de uma forma ou de outra, onde começaram. Todo esse mundo construído e consolidado logo na primeira cena é extremamente sólido e impassível de mudanças, apesar de essas mudanças serem mesmo necessárias.
Essas características transformam o longa em um híbrido de narrativas clássicas sobre racismo, em uma mistura com questões mais atuais. No cinema e na literatura anterior a ele, é possível destacar produções como “Adivinha quem Vem para Jantar” e o livro relato “12 Anos de Escravidão”, para retratar essa forma eterna a qual o racismo vai se vincular. Já em uma abordagem mais contemporânea, pode causar lembranças de “Corra!” e o livro “O Avesso da Pele”, em uma questão mais relacionada aos corpos negros sempre colocados de uma determinada forma, especialmente para serem usados.
Apesar de todos esses elementos, é até feliz como “M8: Quando a morte socorre a vida” termina de uma forma menos taxativa e mais esperançosa. É como se, através desses questionamentos, como os feitos pelo Maurício, a realidade fosse possível e passível de ser diferente. Não que tudo mudará da noite para o dia (e Jefferson De deixa claro seu posicionamento nesse sentido, especialmente pela forma padronizada como os personagens negros ocupam espaço na história). Todavia, há uma realidade que poderá se modificar cada vez mais que discussões e questionamentos forem feitos. Enquanto a morte e a vida no caixão é, para muitos, ainda como indigente, para outros, pode ser de reconhecimento. E não apenas da violência que continua forte nesses corpos (como o caso recente no Rio Grande do Sul), mas também no caráter de uma evolução da sociedade para o eterno.