Marjorie Prime

Marjorie Prime

Matheus Fiore - 6 de dezembro de 2017

Minha vó, a linda dona Georgette, já passou dos oitenta anos. Até pouco tempo atrás, ela era uma artista sempre ativa: cantava, dançava, atuava, e fazia a alegria não só da plateia de suas peças no Retiro dos Artistas, como de todos os familiares e amigos, incluindo seus nove filhos e incontáveis netos. Em 2016, porém, minha vó começou a apresentar problemas de memória. O baque veio recentemente, na semana em que escrevo esse texto, quando meu pai me disse que eu deveria visitá-la, pois ela não estava conseguindo se lembrar de mim.

Uma ou outra bronca, uma porrada de chinelo na infância, muito carinho, risadas e piadas. É o que sempre vou lembrar da minha vó, que sempre foi – e ainda é – o alicerce de felicidade que mantém toda a família unida. É doloroso, portanto, ver que ela não mais tem as mesmas memórias dessa relação comigo. Marjorie Prime trata justamente dessa lacuna humana: a fragilidade de nossa memória. Na trama que se passa em um futuro não muito distante, um serviço permite que as pessoas tragam de volta entes queridos por meio de um programa holográfico, no qual, com ajuda dos familiares remanescentes, é reconstruída a personalidade dos que se foram, a fim de emular sua presença à perfeição.

Marjorie (Lois Smith), uma idosa com sinais de Alzheimer, utiliza o programa para reviver seu relacionamento com o falecido marido, Walter (Jon Hamm) – e eu não conseguia parar de imaginar como minha vó ficaria feliz de poder utilizar essa tecnologia para conversar com meu falecido avô. Por meio das conversas de Marjorie e seus familiares com os “primes” que surgem ao longo da projeção, somos capazes de reconstruir e compreender as relações dessa família quebrada que, aos poucos, nos revela suas fragilidades. Assim, entendemos o peso da ausência dos que foram e a melancolia dos que ficaram.

Não só a memória, mas a morte também é um tema recorrente em Marjorie Prime. E ambos são tratados com a naturalidade que merecem. A morte, por exemplo, nunca é anunciada ou dramatizada. Os personagens que, durante a projeção, falecem, simplesmente desaparecem entre uma passagem de tempo e outra. Passagens essas que, brilhantemente, são estabelecidas com imagens da natureza, como o mar, a areia ou o céu, imprimindo naturalidade ao processo.

Marjorie, uma senhora confusa por sua condição mental, tem suas nuances sentimentais muito bem estabelecidas pelo figurino. O uso constante de um casaco cinza, por exemplo, imprime a nebulosidade de suas ideias. E esse agasalho sempre deixa à mostra um pouco da roupa que Marjorie usa por baixo: quando feliz e em contato com o holograma de seu falecido marido, a personagem veste vermelho; quando triste e solitária, veste azul.

A grande cereja do bolo de Marjorie Prime está em trazer sempre duas perspectivas das memórias de seus personagens: o relato e o fato. Mesmo que as memórias de Marjorie sejam equivocadas, ela as vive como se fossem reais, o que é ratificado pela escolha do roteiro em trazer a representação de algumas dessas memórias (como o pedido de casamento feito por Walter). Para quem assiste ao filme, as memórias são tão reais quanto para Marjorie, já que estamos assistindo ao passado, presente, futuro e memórias com o mesmo tratamento fílmico.

Disso, cria-se o espaço para trabalhar a dor de quem é apegado às memórias mais dolorosas. Tess, a filha de Marjorie, por exemplo, nunca superou a perda de Damien, irmão que cometeu suicídio. Já para Marjorie, que já não se recorda do rapaz, não há a mesma dor. O envelhecimento e o enfraquecimento da lembrança, então, poupa a idosa de uma ferida que é eterna em sua filha.

Conforme a fragilidade de Marjorie se torna mais evidente, a obra permite que questionemos algumas escolhas da personagem. Sua decisão por ter um holograma do marido jovem, e não na idade em que morreu, por exemplo, inicialmente parece ser apenas uma forma de ela manter uma imagem saudável do companheiro. Mas, diante da doença da protagonista, podemos também dizer que Marjorie é incapaz de lembrar-se de Walter em sua idade avançada. A manutenção de um Walter jovem vai além da afeição estética pela juventude; é também uma forma de fazer com que Marjorie sempre reconheça o holograma, algo que talvez não ocorresse caso a imagem tivesse idade avançada – vale lembrar que Marjorie não se recordava de que seu genro, Jon, havia parado de usar barba, algo que ele deixara de fazer dez anos atrás.

O mais interessante da abordagem sobre memória é como a veracidade de alguns registros mentais dos personagens torna-se irrelevante diante do sentimento atrelado às lembranças. Como é discutido no filme, nós não nos lembramos de acontecimentos, mas das memórias deles. Portanto, se Marjorie lembra-se com tanto entusiasmo de algo que não existiu, a obra em momento algum se atreve a questionar a força dessas lembranças – como sua antiga paixão por um tenista amador que, graças a uma mentira de seu genro, em sua memória tornou-se um caso extra-conjugal com um dos melhores jogadores profissionais do mundo.

Marjorie Prime é veemente na escolha de não apresentar o envelhecimento apenas como a perda de diferenciação de memórias e ilusões. A obra também tem como proposta ensaiar sobre como a vida é um acúmulo de dores. Conforme as gerações passam durante a projeção, por exemplo, vemos um gradual escurecimento do cenário, que traz personagens que se tornam mais amargurados a cada momento – e, no auge da dor de Tess, a filha de Marjorie, é excelente a escolha em ambientar a cena na chuva e com pouquíssima iluminação, totalmente contrastante com a aura dourada trazida pelo Sol na primeira cena da obra. Com isso, cria-se no ambiente o peso das memórias, a força do legado deixado – Tess, como dito, nunca superou a perda do irmão e, talvez pela latente depressão, perdeu os laços com a filha.

O filme trata a vida como um teatro, desde o uso de poucas locações à aposta na força dos diálogos entre os personagens e ao uso da luz como maior recurso narrativo. E isso mais um vez faz eu me lembrar de dona Georgette e sua paixão pelo palco, já não mais tão frequentado, mas igualmente importante. Se não para ela, que talvez não se lembre mais, para mim, que pude ver, pelo menos uma vez, seu show da primeira fileira. Assim como suas brincadeiras, que talvez não sejam mais frequentes em sua lembrança, ainda o são na memória de todos os meus primos e tios.

Pela forma com que os relacionamentos entre os humanos e os “primes” se desenvolvem, Marjorie Prime ainda abre espaço para análises psicanalíticas, principalmente por meio da relação quase metafórica que há: os hologramas que representam as memórias funcionam quase como terapeutas para os usuários, que chegam a proferir frases como “nas primeiras conversas, eu falarei muito e você ouvirá o que tenho a dizer”, que é um acontecimento característico das fases iniciais do acompanhamento psicológico – o profissional de saúde mental ouve o máximo de seu paciente para, aos poucos, construir seu perfil psicológico e começar a análise. Não é à toa que os sofás onde ocorrem tais conversas muito se assemelhem a um divã.

Marjorie Prime é um ensaio sobre nosso legado. Sobre nossas dores e memórias e como nós as gravamos em nossas mentes. Sobre como nossa lembrança é forte, ao mesmo tempo que frágil e nem sempre confiável – o que nunca as torna menos verdadeiras. É uma forma de nos lembrarmos de que a vida é feita de amores, dores e perdas, e que nenhum desses elementos é eterno. Porque, um dia, nós também seremos Marjorie, nós também seremos Georgette, e nós também seremos, depois, só uma memória. Particularmente, eu sempre vou lembrar da minha vó como o ser humano mais amável que já existiu. E que bom que ainda a tenho para escrever esse texto, dedicar e mostrar a ela.

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