Apesar dos filmes da produtora Filmes de Plástico serem caracterizados por um olhar atento e delicado para o cotidiano de personagens da periferia de Contagem, há neles também, para além de certa rarefação dramatúrgica, um forte impulso narrativo, no sentido de incorporarem códigos e motes consagrados, dotados de algum apelo. São bons exemplos disso o primeiro longa da dupla Gabriel Martins e Maurílio Martins, No Coração do Mundo (2019), e o curta que o inspirou parcialmente, Contagem (2010): ambos buscam estabelecer um peso dramático por meio do entrecruzamento de personagens e ações de alguma forma vinculadas ao crime, estratégia recorrente em filmes internacionais considerados densos, apesar de não deixarem de ser também sobre a paisagem urbana contagense e a vida diária de seus habitantes, permeada por acontecimentos de pequena monta.
Marte Um, dirigido por Gabriel e coproduzido por Maurílio, de certa forma repete esse esquema, ainda que flertando com outros códigos. O enredo se interessa primordialmente por momentos e gestos cotidianos, ao narrar os dramas, sonhos e frustrações de uma família de classe média baixa da cidade mineira. As questões postas em cena a princípio caberiam perfeitamente num filme sem grandes eventos narrativos. No entanto, os roteiristas optam por introduzir uma escalada de conflitos que, por vezes, soam forçados e/ou se resolvem de forma insatisfatória: a coincidência de datas entre a palestra de Neil DeGrasse Tyson e a peneira do Cruzeiro, que marcam o conflito de interesses entre Wellington (Carlos Francisco) e seu filho Deivinho (Cícero Lucas); a situação grave que surge no trabalho do primeiro como consequência de um erro seu; o abandono total e repentino do assunto da viagem do garoto protagonista para São Paulo a partir de certo ponto.
Se esse impulso narrativo se integrava melhor ao naturalismo da encenação num filme como No Coração do Mundo, sobre pessoas sufocadas por seu mundo de oportunidades limitadas e que se entregavam ao crime buscando desesperadamente uma saída, em Marte Um ele soa como acomodação a um formato mais palatável e pretensamente “universal”. Gabriel Martins escapa aqui de um cinema inteiramente alicerçado numa dramaturgia do mínimo, como são os longas de seu parceiro de Filmes de Plástico (e coprodutor de Marte Um) André Novais Oliveira – Ela Volta na Quinta (2013) e Temporada (2018). Ao menos o diretor e roteirista acerta na escolha de um evento meio non sense para disparar a crise da personagem Tércia (Rejane Faria), dando a ela uma pitada de originalidade e particularidade muito bem-vinda.
Apesar disso, Marte Um se mantém de pé como um drama delicado sobre uma família sobrevivendo aos desafios de uma vida sempre no fio da navalha. No fim das contas, essa combinação de necessidade com predisposição para continuar tentando, reconhecível para qualquer pessoa criada num meio com consideráveis restrições econômicas e que tem que trabalhar para pagar as contas no fim do mês, é a alma do filme. Nem precisava da cena final, bonita, mas talvez expositiva além da conta. Bastavam os muitos pequenos momentos de hesitação, insegurança, como o da conversa sobre manter ou não a TV por assinatura para Wellington ver os jogos do Cruzeiro, ou o da saída de casa de Eunice (Camilla Damião).
Curiosamente, um elemento que funciona bem em Marte Um é a breve referência à ascensão de Bolsonaro ao poder, que a princípio poderia soar forçada, uma tentativa de Gabriel Martins atribuir ao seu filme um acento político mais explícito. No entanto, a cena, que abre a narrativa, acaba por anunciar o tema principal com um misto de melancolia e vigor, já que o corte do áudio da celebração pela vitória eleitoral da extrema-direita para um conjunto de momentos que compõem o dia seguinte da família de protagonistas (acordar, pegar o ônibus para o trabalho, assistir às aulas na faculdade e na escola) marca, de cara, essa capacidade de seguir em frente da gente que o presidente mais odeia. E que é quem de fato move o país.