O oportunismo da estreia de Matrix Resurrections nos cinemas brasileiros uma semana após Homem Aranha: Sem Volta Para Casa permite traçar um contraste que pode servir como um bom ponto de partida para abrir sua discussão. Afinal, são dois filmes que, em comum, revisitam suas próprias franquias e trazem o passado ao presente, mas não poderiam ser mais opostos no tratamento da sua própria iconografia enquanto mote narrativo e imagético. Uma grande carência na obra de Jon Watts é a falta de interesse em lidar com a autoconsciência de que, após duas décadas, o personagem Homem-Aranha gerou um acúmulo simbólico de imagens dentro da própria história do blockbuster moderno e que o seu novo filme poderia ter sido uma oportunidade de um confrontamento metatextual do seu próprio legado. Ao contrário disso, o filme se limita a trazer rostos conhecidos e confiar no carisma desses atores para segurar a identificação espectatorial, estando mais interessado em reconhecer o passado através da repetição de frases icônicas ou referências por meio de diálogos. Já na direção oposta, Resurrections existe intrinsecamente enquanto um curto-circuito que implode o seu próprio legado, para confrontar e ressignificar o que a franquia Matrix construiu, enquanto imagens, em seus 20 anos de existência.
Quando falo nos termos “curto-circuito” e “implosão“ em Resurrections, não se trata apenas da sua relação narrativa com a franquia na qual ele está inserido, mas também de uma relação industrial e mercadológica, na qual o filme, antes de tudo, reconhece sua existência (e sobrevivência ao longo dos anos) paradoxalmente como um produto que foi alimentado no imagético popular por uma legião de nerds, que, diga-se de passagem, são o completo oposto de Lily e Lana Wachowski. Por isso, ao atualizar o mundo simulacro para um lugar em que “Matrix” existe enquanto uma franquia de sucesso na mídia dos video games, movida por interesses comerciais e gananciosos, os primeiros 40 minutos deste retorno ao universo de Matrix se configuram a partir de uma grande piada iconoclasta.
Trata-se de uma autoconsciência por parte de Lana que reconhece o fato de que o próprio universo que ela criou se tornou, ironicamente, um produto de alienação. Reconhecer que o mundo farsesco e lobotomizado de 1999 em 2021 se tornou um mundo na qual o próprio símbolo Matrix fora deturpado e cujo sentido tenha se perdido no meio de discussões “geeks” sobre lógica, easter eggs, verossimilhança, universo expandido e etc. mostra como Wachowski também faz dessa uma oportunidade de retomar os rumos de sua própria obra. Agora, a diretora não abomina mais o homem engravatado que fica no seu cubículo de computador, mas o hipster cool cabeludo que trabalha em um escritório com mesa de ping pong e faz terapia para resolver seus problemas de raiva ou o nerd gente boa das teorias de conspiração. Assim, que existam comparações dessa obra com Os Últimos Jedi, da franquia Star Wars, é algo que faz sentido, visto que Wachowski rejeita o seu próprio grande público e a própria indústria na qual ele se concebeu.
A partir daí, entra-se, sobretudo, em um curto-circuito que não é apenas uma “sacada de roteiro”, mas que reside principalmente em um questionamento das suas próprias imagens. Ao integrar em sua própria narrativa um jogo de vai-e-vem com cenas da trilogia original de Matrix, seja com a sua reprodução original ou com a reimaginação de diversos de seus momentos, percebe-se um denominador em comum no meio de toda essa ideia: os corpos e pessoas por trás daquelas cenas nunca importaram, mas sim os gestos, motivações e símbolos internos a eles. Basta saber da vida pessoal das irmãs Wachowski para entender o quanto ter a liberdade para mudar é uma questão cara a elas, sendo isso algo que se estende do real para a ficção em Matrix, que encontra como motivação para suas alterações canônicas o simples fato delas poderem ser e pensadas para novos tempos simplesmente porque isso é possível.
Muito já se dizia sobre a trilogia original enquanto metáfora transsexual (algo confirmado pelas próprias diretoras), mas a verdade é que sempre existiu um simbolismo meio contraditório no fato de que o grande salvador era um Messias branco e cis. Porém, o que antes era subtexto, Resurrections atualiza para texto diretamente na cara desse espectador que Lana Wachowski tanto parece odiar. Primeiramente, não há mais o binarismo do “eles” contra “nós”, já que agora o mundo é um lugar que aceita tanto máquinas como humanos, que se auxiliam mutuamente e criam vínculos afetivos (inclusive, esta relação fica devendo mais momentos). Em segundo, atualiza-se conscientemente a questão do “salvador” para uma realidade não-binária, em que não se trata agora mais de Neo isoladamente, que nunca fora importante, mas sim de sua relação com Trinity, o que faz com que a salvação do Universo seja uma força que supera a questão de gêneros e pode transitar entre esses dois corpos.
Quando Laurence Fishburne e Hugo Weaving não voltam para reviver Morpheus e Agente Smith, sendo substituídos por Yahya Abdul-Mateen II e Jonathan Groff, um aparente problema se transforma em solução para esta tese central. Essas figuras são menos um corpo e mais uma força que pode habitar diferentes receptáculos, assim como são Neo e Trinity. Ou seja, quanto mais a história vai se repetindo enquanto farsa dentro do filme, isso se revela como um gesto exaustivo que busca revelar uma espécie de verdade a partir deste procedimento acumulatório. Melhor dizendo: quanto mais se repete variações de uma mesma cena, o que se mantém em todas elas, mesmo com todas as mudanças em sua superfície? Qual o seu núcleo?
Ora, tanto na trilogia original de Matrix quanto em Resurrections, todo o afunilamento da complexidade da história leva para uma tragédia de amor. A emulação e repetição das cenas do original de 1999, de Reloaded e de Revolutions nunca são aqui como um fim nostálgico em si mesmo, mas para lembrar que a força motriz dessa jornada do herói sempre foi a busca de Neo por Trinity, de modo que a grande escolha de Matrix nunca foi a blue pill ou a red pill, mas sim a de escolher ir salvar o amor ao invés do mundo (e será isso que justamente salvará o mundo). É justamente essa a grande missão em 2021, que existe aqui como uma dupla camada: Neo deve fazer “Tiffany” (Trinity) lembrar da existência deste amor, mas também fazer o fã deste universo deste grande dilema essencial de Matrix. Novamente, Lana é irônica: despertar da simulação, desta vez, significa abandonar todo aquela realidade nerd e ir atrás do amor (o que no caso de Trinity também significa abandonar a estrutura tradicional de um casamento).
Amar, no universo de Matrix, é tão espiritual quanto corporal (o que é abominado em qualquer cinema de super herói moderno assexuado). Se uma das cenas mais icônicas da franquia é em Reloaded, na grande festa de Zion com tons de orgia, sua repetição em Resurrections é ressignificada para a lógica de cena ação, na cafeteria em que Neo e Trinity lutam contra diversos corpos para tocarem suas mãos. Percebe-se que a grande força (tanto dramática quanto literal) desse momento reside na possibilidade do toque, cuja consequência é uma explosão de luz. Na verdade, isso vem de uma dramaticidade que Wachowski possui a plena consciência desde os primeiros filmes dirigidos por ela nesse universo. Para contrastar com um universo tão falso (na sessão em IMAX, o mundo nunca pareceu tanto uma mentira quanto agora) e maleável, a única possibilidade de se revelar um sentimento inteiramente genuíno e real é através da fisicalidade e dos corpos de seus atores. Se tudo é falso, nada poderia ter peso, mas o que Resurrections mostra é que, não importa quantas vezes aquele ciclo se reinvente e reconfigure, de acordo com o zeitgeist de cada época, a única base universal e atemporal que deve continuar para a franquia sobreviver é a do amor.
No fim, Lana Wachowski pode não amar o seu público, mas certamente ama seus filmes e, acima de tudo, concede toda vez a Neo e Trinity a possibilidade de se acharem no universo e se amarem. Não se trata de uma volta em 360º graus que retoma ao ponto inicial da partida sem nenhuma mudança, mas de um acúmulo de experiências e vivências, evoluindo em relação ao estado de espírito anterior. Não se trata de uma história de amor que começa do zero, mas que se permite amar cada vez com mais força a cada encontro dentro deste ciclo de esquecer e relembrar.