Todo ser humano é resultado de suas experiências e influências. Mais do que o que ouvimos, absorvemos o que vemos e sentimos. Moonlight, segundo longa-metragem de Barry Jenkins (que escreve e dirige o filme), é uma obra que trata justamente do legado do passado na construção moral do ser humano.
Separando sua narrativa em três arcos com histórias complementares, acompanhamos o protagonista, Chiron, em três momentos: na infância, quando ainda descobria sua homossexualidade; na adolescência, quando já ciente de sua sexualidade o personagem é alvo de bullying e rejeição tanto na escola quanto em casa; e na vida adulta, quando vemos um homem marcado por seus traumas que se apega às poucas referências que teve e amarga uma vida solitária.
Mesmo sendo um filme excelente em toda sua metragem, Moonlight se destaca mais em seu primeiro ato. A descoberta do mundo pelos olhos de Chiron (aqui apelidado de “Little”) não explicita, mas torna latente os vindouros problemas na vida do personagem. Sua mãe, Paula (Naomi Harris), além de viciada em crack, não aceita sua homossexualidade, e mesmo não o agredindo fisicamente, sempre o humilha e assusta com seu estado emocional alterado pelas drogas.
Enquanto se descobre, Chiron se aproxima de Juan (Mahershala Ali) e Teresa (Janelle Monáe), um casal que mora próximo ao menino e que o trata com o carinho que nunca recebeu da mãe. Para retratar o florescer desta relação, há lindos momentos, como quando Juan ensina o pequeno Chiron a nadar. Na cena, “Little” é filmado por trás, com a correnteza empurrando-o em nossa direção, uma forma poética de simbolizar como o jovem precisa nadar contra a corrente e conquistar seu espaço no mundo.
O inteligente roteiro de Barry Jenkins faz questão de não mastigar todos os sentimentos de Chiron, mas a direção é inteligente e sublime ao demonstrar com cores e enquadramentos o que se passa no coração do protagonista. Há de se destacar o uso da cor rosa, por exemplo. Há uma cena na qual a mãe de “Little”, Paula, grita com a criança. Percebemos uma luz rosa saindo do quarto da progenitora que, quando a personagem bate a porta, desaparece. A luz rosa, aqui, pode ser interpretada como o amor materno, negado ao protagonista tanto pela questão de sua sexualidade quanto pelo vício de Paula.
Com muita sensibilidade, Moonlight usa um tom mais desbotado de rosa no salão de dança da escola de Chiron, construindo um espaço onde o personagem encontra algum amor. É também interessante perceber que a casa de Juan e Teresa, casal que trata “Little” como se fosse um filho, tem suas paredes brancas, mas sendo gradualmente pintadas de rosa, fazendo referência à relação de amor que ali se constrói.
Tanto no salão de dança quanto na casa dos amigos que o “adotam”, o rosa não possui a vivacidade da luz do quarto de sua mãe. Nenhuma forma de amor poderia substituir o amor materno, afinal. Ainda no primeiro ato, as cores também são importantes para construir o amor de Chiron por seu único amigo, Kevin. As duas crianças vestem roupas brancas com traços azuis. A do protagonista, porém, tem uma grossa camada vermelha dominando sua veste, demonstrando o amor que ele sente por seu colega.
Apesar do uso do vermelho e do rosa, porém, na primeira metade de Moonlight, o tom mais destacado tanto nos figurinos quanto nos cenários e iluminações é o azul. A tristeza de Chiron não é expressa por suas palavras (sempre mínimas), mas está presentes em seu semblante cabisbaixo e na manutenção da cor triste que o cerca em praticamente todo enquadramento.
No fim da infância e na adolescência de Chiron, o filme passa a utilizar planos close-up com os rostos dos personagens centralizados, de forma a construir uma oposição entre o protagonista e as pessoas ao seu redor pela rima visual. Outra constante que retrata a hostilidade presente na vida do personagem são os planos que passeiam pelos olhares das pessoas do cotidiano de Chiron, filmados no contra-plongée, simbolizando o quão indefeso é o jovem diante de quem o julga e odeia.
Um eficiente recurso utilizado para retratar o isolamento do personagem é a condução dos diálogos entre Chiron e Paula em planos separados, criando a distância entre filho e mãe, enquanto nas cenas com Juan e Teresa, as conversas costumam ser retratadas em planos conjuntos mais aconchegantes e confortáveis para o protagonista, que aos poucos encontra conforto com sua “segunda família”.
Esse isolamento também é introduzido em cenas cujo protagonista é separado dos outros alunos de sua escola por grades. A presença de outros poucos personagens ao lado de Chiron, porém, indica que o jovem não está completamente desamparado, tendo em algumas poucas figuras algum apoio. O problema é que até estes são sujeitados a confrontar Chiron por coerção do meio preconceituoso onde vivem.
As atuações de Moonlight são impecáveis. Alex Hilbbert e Ashton Sanders, que interpretam o protagonista na infância e na adolescência, constróem um Chiron extremamente tímido e introspectivo, principalmente pelos movimentos corporais receosos, olhares fixos e rosto sempre inclinado para baixo. Já Trevante Rhodes, que dá vida a Chiron em sua vida adulta, mesmo sem grandes diálogos, traz no olhar a solidão e a tristeza carregados no âmago do personagem. É muito perceptível a diferença de postura dos dois primeiros para o terceiro. A versão adulta de “Little” absorveu suas experiências e dela construiu uma persona a fim de proteger-se do mundo.
Mahershala Ali e Naomie Harris dão saltos em suas carreiras como Juan e Paula. Sempre dando drama à história e ajudando a fortalecer a figura de pai “adotivo” relutante e mãe perdida em sua vida entorpecida, parecendo extremamente ameaçadora para a figura de Chiron por ser sempre imprevisível e instável. O contraste entre a figura amável e preocupada do primeiro e a quase vilanesca e violenta da segunda criam um equilíbrio extremamente necessário para compreendermos as escolhas da versão adulta de Chiron.
Ao não aprofundar nos diálogos os principais dramas dos personagens, Moonlight torna-se uma obra extremamente sensível e intimista. Detalhes como a coroa no painel do carro de Chiron são não só uma bela forma de mostrar com imagens quais rumos a vida do protagonista tomou, mas também para mostrar a insegurança e fragilidade do personagem que o levaram a mimetizar as escolhas de vida de sua única referência.
A trilha de Moonlight, baseada em arranjos de violino e um melancólico piano, exerce função tão importante quanto o roteiro para dar tom às cenas, mas é nos silêncios e nos olhares que a obra encontra seu peso. Os espaços entre as perguntas, os olhares resultantes dos diálogos e, principalmente, as expressões faciais consequentes dos momentos mais intensos, contam histórias por si só e descartam a necessidade de falas óbvias e artificiais que tirariam o peso do enredo.
Mesmo não aprofundando tanto os conflitos dos personagens (o objetivo aqui é apenas fazer breves ensaios sobre estes e mostrar como eles construíram o que Chiron se tornou), Moonlight é um filme extremamente poético, intenso e dramático. A organização de seus arcos é uma escolha essencial para compreendermos o destino do protagonista, e a direção e o roteiro de Barry Jenkins são magníficos ao retratar a hostilidade e dificuldade de encontrar alívio do jovem homossexual. Mas o grande mérito do filme é retratar um grave problema social que, mesmo no século XXI, ainda resiste, sem tornar-se uma obra panfletária ou óbvia.
Uma obra sobre referências, influências, amor e empatia. Um ensaio sobre como nosso entorno nos molda e distorce e como muitas vezes aceitamos e abraçamos uma faceta deformada de nossa própria realidade para, mesmo que enganando nossos sentimentos, consigamos alguma aceitação. Em momento algum Moonlight sequer esboça tentar nos fazer concordar com as escolhas de seus personagens, mas que por sua sensibilidade e exposição, nos faz entender, sem julgar, tudo que sua narrativa impõe.