Jia Zhang-ke é um dos artistas contemporâneos mais preocupados em retratar a realidade de seu país. Tanto no brilhante Prazeres Desconhecidos quanto na obra-prima recente Amor Até as Cinzas, Jia utilizou o contexto político da sociedade chinesa para contar belas histórias sobre amor, liberdade e sonhos. Em Nadando Até o Mar se Tornar Azul, Jia também se preocupa em abordar a realidade, mas com duas grandes diferenças em relação ao cinema recente que vinha fazendo: seu recorte parte exclusivamente do olhar do trabalhador e seu método parte do cinema documental.
O filme se divide em dezoito capítulos e foca em contar as histórias de vida de alguns trabalhadores e suas famílias. Com a sensibilidade que poucos possuem no cinema contemporâneo, Jia consegue realizar esse projeto com a mínima interferência possível. É um documentário que não se preocupa em guiar as entrevistas cedidas pelos personagens, conseguindo amarrar todas elas ao destacar justamente o que elas têm em comum: sua humanidade.
O recorte de Jia não é exatamente inédito – o que não falta no cinema nacional, por exemplo, são documentários sobre a classe trabalhadora, como como ABC da Greve de Leon Hirszman e Peões, de Eduardo Coutinho. Hoje, porém, a China é o principal polo tecnológico do mundo. É o país da mão de obra barata e eficiente, é o país que fabrica, por exemplo, boa parte dos smartphones que são usados por bilhões de pessoas em todo o mundo. Jia, portanto, consegue passar da camada mais óbvia das relações empregatícias da China e mostrar como, por trás dessa mão de obra, há pessoas complexas, criativas, cheias de vida e histórias para contar.
Essa postura observacional e pouco invasiva de Jia funciona perfeitamente justamente pela confiança do cineasta na universalidade das histórias contadas. Nunca tarda para que os relatos sobre eventos cotidianos sejam expandidos para reflexões que qualquer um possa se identificar. Nadando Até o Mar se Tornar Azul é um filme que parte de situações e relatos muito simples para se tornar uma reflexão sobre toda a construção cultural da China a partir das vivências e olhares do povo chinês.
Para tornar essa narrativa possível, Jia não poderia fazer uma escolha melhor do que a de tornar Nadando Até o Mar se Tornar Azul um filme sobre e feito por rostos. Um filme que constantemente utiliza uma profundidade de campo curta e desfoca todo cenário, deixando apenas os rostos das pessoas contando suas histórias, fortalecendo essa tradição oral que constrói a cultura representada. A montagem vez ou outra entrecorta esses rostos com paisagens ou equipamentos de trabalho, apenas para reiterar que essas figuras não existem em um vácuo. São fruto do contexto no qual vivem, são humanos que absorvem seus arredores e, assim, enriquecem a narrativa. Com isso, Nadando Até o Mar se Tornar Azul se torna um belo registro de como as pessoas formam essa sociedade e sua cultura e sobre como a perspectiva do proletário é a única possível para entendermos qualquer contexto sociopolítico.