Este texto contém revelações sobre o enredo (spoilers) de Nascido Para Matar.
Nascido Para Matar ficou marcado como um filme que chegou “tarde demais” aos cinemas: após Apocalypse Now e Platoon, respectivamente de Francis Ford Coppola e Oliver Stone, o grande público parecia saturado com histórias sobre a Guerra do Vietnã. O limitado sucesso comercial, que talvez tenha sido a grande tônica na carreira de Stanley Kubrick, pode ser explicado nesse caso por um mal-entendido: Nascido Para Matar se passa na Guerra do Vietnã, mas não é necessariamente sobre ela.
Kubrick, um anti-belicista constantemente desencantado com a Humanidade (embora negasse veementemente o rótulo de misantropo), fez um filme sobre a desumanização do indivíduo no ambiente marcial. Não importa qual é a guerra que se está lutando, pois o efeito produzido é o mesmo: colapso mental, perda de sentido na própria existência e matança indiscriminada. Nascido Para Matar começa com jovens entrando em um “mundo de merda” e termina com um destes jovens, o protagonista do filme, abraçando seu papel neste mundo, celebrando por ter sobrevivido – até então – a ele. Completamente acrítico sobre motivações e propósitos, apertando o gatilho na esperança de que o som dos tiros abafe os próprios pensamentos conflitantes.
A divisão do filme em dois arcos, que num primeiro olhar parecem relacionados apenas cronologicamente, posteriormente apresentam paralelismos temáticos. A guerra é vazia de sentido, então assim deve ser o treinamento. O inimigo é impiedoso e injusto, na mesma medida que o instrutor dos fuzileiros o é. O sargento Hartman (R. Lee Ermey, ator e sargento reformado) representa o inimigo dos recrutas, alguém que não vê nomes ou rostos, mas a única fonte de conhecimento antes de ir para o front. E esse conhecimento é legitimado com a capacidade de enterrar ressentimentos e seguir ordens, exatamente o que os recrutas precisarão fazer no Vietnã.
No arco narrativo do treinamento, Kubrick entrega um pacote que usa todos os recursos à disposição para esterilizar e condenar a individualidade. No primeiro discurso de Hartman, a câmera o acompanha de frente, mantendo a mesma distância para o personagem durante toda a sua fala. Num ambiente pornograficamente simétrico e com recrutas uniformizados de cabeças raspadas, não existe sensação de deslocamento no caminhar do sargento. Os homens estáticos como objetos de decoração fazem parecer que Hartman não está falando para ninguém além de si próprio. E é verdade. Por isso ele não se preocupa em saber seus nomes, chamando-os arbitrariamente de Joker, Cowboy (Arliss Howard), Snowball (Peter Edmund) e Gomer Pyle – mesmo nome do mecânico bobalhão de uma sitcom americana dos anos 60.
Pyle (primeiro grande papel de Vincent D’Onofrio, o Wilson Fisk de Demolidor) representa tanto a quebra do indivíduo quanto a indiferença do coletivo. Seu riso – punido com o auto-enforcamento – indica que ele era o único capaz de ver o absurdo daquele embuste. Seus erros são punidos com maior severidade porque Hartman vê nele um desejo de ser diferente dos demais. No mundo cartesiano de Parris Island, qualquer ameaça à ordem deve ser extirpada. E é quando o grupo entende o recruta corpulento como um obstáculo entre o treinamento e o campo de batalha que, na “festa do cobertor”, rompe-se o último fio de empatia por qualquer um visto como diferente. Fuzileiros são irmãos de fuzileiros e indiferentes aos demais. Isto também representa o ponto de não retorno para Pyle, quando ele se vê absolutamente sozinho e, consequentemente, livre de qualquer compromisso com aqueles homens.
A citação de William S. Burroughs presente no livro The Short-Timers (do qual Nascido Para Matar é adaptado), “um psicótico é um cara que acaba de descobrir a realidade”, ilustra o quanto a derrocada de Pyle, que ria dos xingamentos de Hartman e contrabandeava rosquinhas para o dormitório, era inevitável e fora bem plantada. O choque de ser engolido por um mundo absurdo e a incapacidade de fugir dele o forçaram a abraçar este mundo com mais convicção do que qualquer um. E, embora absurdo, ele não deixa de ser coerente: um fuzileiro motivado com seu fuzil nas mãos é capaz de feitos notáveis. E Gomer Pyle se uniu a Charles Whitman e Lee Harvey Oswald na galeria de melhores fuzileiros, pois seu surto definitivo se dá após a conclusão do curso. O sistema o aprovara.
O prólogo em Parris Island, que forma como que um filme em si (…) opõe-se aos episódios vietnamitas como a ordem à desordem. Os travellings para trás, a disposição dos lugares, o rigor do ritual da formação sugerem uma lógica implacável, sufocante, claustrofóbica. As cenas de combate impõem outra forma de confinamento por meio de movimentos laterais de câmera, destroços e ruínas acumuladas, cacofonias, cadáveres amontoados. Para Kubrick, como para Valéry, “dois perigos ameaçam o mundo: a ordem e a desordem”.
Michel Ciment. Conversas com Kubrick, p. 210-211
Quatro pontos no arco do Vietnã merecem uma análise específica: a participação feminina, a função da imprensa, as contradições narrativas e o conceito psicológico da Sombra. Diferente da escola freudiana, na qual o Id representa a parte primitiva da personalidade responsável pela busca inconsequente de prazer, o suíço Carl Gustav Jung classifica a Sombra como a parte inconsciente da personalidade humana. A compra de um par de tênis seria explicada por Freud como um embate entre o Id (“quero comprar estes tênis”) e o Ego (“custa caro”) intermediado pelo Superego (“vou parcelar a compra”); já Jung focaria no desejo inconsciente de ser aceito pelo grupo no qual o indivíduo está inserido, motivando a compra consciente dos tais tênis.
Esse contraste aparece claramente em Joker, que usa um capacete com a inscrição “nascido para matar” e um broche com o símbolo da paz. Ele até faz menção à “coisa junguiana” da dualidade humana. Mas não apenas ali: Hartman condiciona o aprendizado de seus recrutas ao abandono do senso crítico e Pyle é aprovado como fuzileiro quando se torna um sociopata. Na escolha certeira das músicas em Nascido Para Matar, Kubrick também cria a estranheza do duplo sentido, como na icônica cena dos jornalistas documentando uma ofensiva militar ao som de “Bird Is The Word“.
O “pássaro” claramente é a águia, símbolo dos Estados Unidos. E a quase não-canção do Trashmen transforma um momento que seria tratado como um monumento patriota em 99% dos filmes de guerra numa grande piada. Um despropósito em que os soldados sequer sabem porque tomam parte. Paradoxalmente, a completa apatia crítica só mostra como aqueles homens foram muito bem ensinados. Ao mesmo tempo que eles sabem lutar uma guerra sem sentido, manipulam descaradamente a opinião pública com notícias falsas. O efeito do Stars and Stripes, o jornal de Joker e Rafterman (Kevyn Major Howard), é perverso pela eficiência: se os soldados acreditam em suas histórias, a guerra é uma mentira; se acreditam nos próprios olhos, as Forças Armadas são uma mentira.
Em ambos os casos, a única resposta é um cinismo niilista. É quando vai para o campo que Joker vê um soldado matando civis a troco de nada e começa a questionar o propósito da guerra. Seu processo de ruptura já havia começado no treinamento, pois a decisão consciente de agredir Pyle vem de um desejo inconsciente de agradar a figura paterna do instrutor Hartman e de pertencer ao pelotão que liderava. E, na decisão definitiva, o seu ponto de não retorno, matar a sniper vietcongue fica numa zona cinzenta: misericórdia ou prazer em matar?
É curioso notar que três mulheres aparecem em Nascido Para Matar, todas no Vietnã: duas prostitutas e a referida sniper. As prostitutas são oferecidas como mercadorias aos soldados americanos, que barganham como numa loja de R$1,99. Já a sniper, a única presença do inimigo no filme inteiro, é o simétrico perfeito daqueles fuzileiros: como reza a oração do primeiro arco, “Eu preciso atirar melhor que o meu inimigo, que está tentando me matar / Eu preciso atirar nele antes que ele atire em mim / E eu irei”. Ela valida a própria humanidade, pelos padrões fuzileiros, por ser uma assassina eficaz. Joker pode tê-la matado como um ato de respeito pela valorosa inimiga ou por um prazer sádico, o que explicaria a “premiação for feiura”.
Teria ele desfigurado o rosto da sniper? Kubrick deixa essa interpretação em aberto, ocupando a tela exclusivamente com o rosto de Joker. Nas palavras de Ciment,
A ironia Kubrickiana é refletida no fato de esse intenso treinamento (com o sargento Hartman) se mostrar, finalmente, de pouco peso diante do instinto vital de sobrevivência e da defesa de seu território de uma jovem vietcongue à espreita, que faz com que esses soldados de elite caiam como moscas.
Conversas com Kubrick, p. 208
Quando Joker caminha pelas ruínas em chamas na noite de Huê, destacando saber que está num “mundo de merda”, mas feliz por estar vivo e não sentir medo, podemos concluir tanto que ele encontrou o sentido da existência ou que a falta de sentido não o incomoda mais. Dramaticamente, sua resposta às duas possibilidades é a mesma: matar. Kubrick se reserva ao direito de não fazer julgamentos morais sobre isso, deixando a cargo do espectador definir se Joker encontrará ou não prazer nisto. Algo perdido no título brasileiro do filme, mas marcante no original “Full Metal Jacket”:
Kubrick ressalta o processo de desumanização ilustrado pelos quarenta primeiros minutos de seu filme. E, se decididamente ambíguo, “metal jacket” lembra também, na dureza do primeiro termo e na maleabilidade do segundo, a mesma contradição entre o mecânico e o ser vivo.
Michel Ciment. Conversas com Kubrick, p. 208
Qualquer elogio à obra de Stanley Kubrick, duas décadas após sua morte, corre o risco de cair na vala comum da banalidade. É trivial reconhecê-lo como um dos maiores realizadores de Cinema de todos os tempos. Identificar o que o torna este monumento à Sétima Arte é o desafio. Nascido Para Matar retrata perfeitamente suas principais qualidades. Uma obra que fornece ferramentas para ser interpretada até o último momento. Já nos créditos finais, “Paint It, Black“, dos Rolling Stones, fornece a única verdade inquestionável em duas horas de projeção. Não é fácil enfrentar o mundo quando tudo é preto.
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