Plano Aberto

Nomadland

É bem curioso que alguns comentários sobre Nomadland na internet recuperem Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans. De fato, há semelhanças entre os dois filmes, sobretudo na abordagem de um mundo do trabalho contemporâneo atomizado e marcado pela errância. Mas também existe uma diferença primordial: a obra-prima mineira, ao se estruturar a partir da perspectiva de um leitor externo, não onisciente, abre uma brecha à imprevisibilidade do destino de seu protagonista que não existe para Chloé Zhao.

Fern (Frances McDormand), a personagem central de Nomadland, é afetada diretamente por um cataclisma econômico e passa a vagar pelo território americano, se adaptando a um estilo de vida nômade que, mesmo quando tem oportunidade, reluta em abandonar. No entanto, Zhao jamais incorpora realmente à narrativa de seu filme as incertezas experimentadas por essa mulher de meia idade que sobrevive à base de empregos temporários mal remunerados e dorme numa van.

Nomadland é todo construído com certo fascínio pelas relações de Fern com os espaços nos quais transita e parece sempre indicar que ela está fadada a permanecer na estrada até morrer (como Swankie, uma das muitas figuras que cruzam o caminho da protagonista). Mas essa inexorabilidade existe no filme não pelo reconhecimento de uma estrutura econômica que oprime e impede qualquer saída para alguém como Fern, e sim para acentuar o tom existencial pretendido pela diretora. Os escapes possíveis que aparecem aqui e ali são prontamente rejeitados porque Zhao entende que sua personagem só faz sentido como instrumento desse olhar meio etéreo para o que seria uma espécie de espírito americano.

A ausência quase total de conflitos nas decisões tomadas por Fern não deixa de ser contraditória, em se tratando de um filme pretensamente realista, que incorpora à narrativa elementos e personagens que são partes da realidade afílmica. O contraponto perfeito aqui é o cinema de Kelly Reichardt, mais especificamente Wendy e Lucy (2008), cuja protagonista em situação de errância é totalmente sufocada pela falta de oportunidades econômicas decorrente de condições sociais concretas e está sempre buscando uma saída. Obter alguma segurança é mais importante que manter viva a alma dos pioneiros.

Esse existencialismo superficial imprime nas imagens de Nomadland uma textura que lembra a dos filmes mais recentes de Pablo Larraín – Neruda (2016), Jackie (2016), Ema (2019)… Que não são ruins, mas possuem uma aura autoimportante meio insustentável, típica de um cinema nobre da década 2010 que se inspirou na visualidade de A Árvore da Vida (2011) mas nunca conseguiu ir além de O Regresso (2015). É o ponto mais fraco do trabalho de Zhao.

Por outro lado, o filme cresce muito quando se dedica a momentos prosaicos de Fern e principalmente à sua inserção entre nômades reais, que Zhao traz para o interior do registro ficcional com uma naturalidade impressionante. É verdadeiramente admirável o ponto de equilíbrio alcançado pela diretora entre a documentarização da ficção e a ficcionalização do documentário. Swankie, Linda May, Bob Wells, Derek e outros são presenças com forte carga realista e, ao mesmo tempo, absolutamente integradas a uma encenação dramatizada. E é claro que Frances McDormand, com seu rosto naturalmente tracejado pelas marcas do tempo e talento imenso, torna essa integração muito menos ruidosa do que poderia ser.

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