Quando “Corra!” foi indicado ao Globo de Ouro na categoria Comédia ou Musical, o diretor e roteirista Jordan Peele afirmou que seu filme, na verdade, era um documentário. Apesar de ser uma brincadeira com o fato de a premiação não encaixar o terror em drama, o comentário de Peele permite outras reflexões. Sua ideia em “Corra!” é mostrar ao mundo o ponto de vista de uma pessoa negra em uma situação como a que viveu o personagem de Daniel Kaluuya para, então, transformar toda a obra em uma sátira social. Com exceção do final, quase todo o filme traz momentos típicos do sutil racismo estrutural da sociedade americana, o que faz com que, para muitos, os momentos de tensão sejam apenas uma reprodução do dia-a-dia – e daí a lógica em falar, mesmo que brincando, que o longa é um documentário.
Na semana de lançamento de “Nós”, seu segundo filme, Peele voltou a brincar com gêneros: afirmou que seu novo filme é um terror. E de fato é. Um filme de terror ainda mais desapegado da realidade e interessado nos códigos do gênero do que “Corra!” – o que não quer dizer que deixe de dialogar com a sociedade atual. “Nós” parte do descortinamento de uma faceta da sociedade americana para avaliar sua cultura do medo e como os indivíduos lidam com esse medo. Aqui, há menos interesse em reproduzir situações rotineiras e mais em analisar a psique humana e nossas relações com nosso lado sombrio.
É interessante observar que Peele não renega elementos basilares da formação da sociedade estadunidense, como a religiosidade. O ponto de partida para os acontecimentos de “Us” é o versículo bíblico de Jeremias 11:11, que diz que Deus abandonou sua criação e que esta clamará em vão por sua ajuda. Com o abandono da figura divina responsável por guiar e julgar moral e eticamente toda a sociedade, os temores de cada um dos cidadãos americanos ganha forma. Pior: na forma deles mesmos. Em “Nós”, Adelaide (Lupita Nyong’o) e sua família são assombrados pelos reflexos de seus próprios traumas e feitos em versões macabras deles mesmos.
O universo de “Nós” é construído de maneira peculiar. O prólogo que estabelece o trauma que marca a infância da protagonista sugere a presença de algo místico e metafísico desde o começo. Essa sugestão é feita não só pelas referências bíblicas, mas por todo o mistério criado em torno da ida de Adelaide a uma casa de espelhos em um parque de diversões, momento que traumatiza a personagem mas que não nos deixa ter conhecimento total do que de fato aconteceu no lugar. Aliás, espelhos e sombras são constantemente destacados pela câmera. Quando o foco é na sombra projetada pelos personagens, Peele ainda escolhe ângulos que façam parecer que, quem se move, na verdade, são as sombras, não as pessoas. É como se o diretor assumisse que a versão sombria dos personagens não é o resultado de um acontecimento ou outro, mas sim uma face dos próprios personagens que elee desconhecem. O espelho, portanto, é um elemento amedrontador por colocar os indivíduos face a face som esse lado obscuro.
É interessante a inserção do misticismo, pois, inicialmente, acreditamos que a aparição dos macabros antagonistas criará um irremediável terror para os protagonistas. Entretanto, o que vemos é um horror inicial que, aos poucos, passa a dividir espaço com o humor. Se a primeira reação de Adelaide, seu marido e filhos é temer pela vida ao serem confrontados com suas versões vilanescas, em dado momento da trama, a família já se vê fazendo piadas sobre a situação em que se encontra. A escolha se paga, pois a ideia de Peele não parece ser simplesmente brincar com a alternância dos gêneros ou fazer humor com a situação bizarra, mas dizer algo sobre aqueles personagens e como eles reagem aos estímulos temáticos.
Há dois conceitos centrais para cimentar o mundo de “Nós”. O primeiro é essa construção de sentimentos reprimidos, escanteados para os confins da mente humana, mas que em momentos extremos, como o da obra, emergem. O segundo é a normatização da violência, que não é embelezada ou glorificada, mas também não é jamais um elemento estranho para os personagens. A família que protagoniza “Nós” até hesita em aderir à violência como método de defesa, mas, ao fazê-lo, parece não ter nenhum arrependimento. O simples olhar no espelho, portanto, ganha contornos não só místicos, mas metafóricos, como quase todos os elementos que permeiam a narrativa. A violência existe, é naturalizada e, então, materializada na versão maléfica do indivíduo.
Vários elementos visuais e espaciais de “Nós” que surgem como dispositivos de terror, como, por exemplo, as cenas dos seres macabros de mãos dadas fazendo uma corrente humana. O truque de Peele é fazer com que esses elementos apareçam primeiro na televisão e no vidro do carro, o que é exitoso em dois aspectos: primeiro porque o foreshadowing (prenúncio) é uma técnica importante para garantir coesão narrativa; segundo porque desenvolve mais um elo entre o mundo pré e o mundo pós-invasão das “cópias do mal”. É como se o apocalipse de Peele exigisse não só a ausência do amparo divino, mas a materialização de mitos da cultura e da mídia (representada pela televisão). A obra de Peele, portanto, utiliza parte de ideias basilares na fundação da América (o destino manifesto) e a materialização da forma da mídia como bases para revelar a verdadeira face dos Estados Unidos: um país refém do medo, com uma população “educada” e entorpecida pela violência.
E, se essa revelação não nos mostra nada a não ser a própria sociedade americana, podemos imaginar que, para Peele, o maior inimigo da América seja… A própria América. Bem como o maior inimigo de cada indivíduo é o próprio indivíduo. Em “Nós”, basta que Deus nos abandone para que revelemos nosso lado sombrio. “Nós” é, como muitos dos bons filmes de terror, um filme sobre o medo, mas em um sentido bem mais amplo do que em uma experiência individual isolada. É sobre o medo do que desconhecemos, mas também sobre o medo do que escondemos e de quem realmente somos. A conclusão, então, nos permite apreciar uma ressignificação da postagem de Peele na semana da estréia da obra: os Estados Unidos são um filme de terror.