O “sonho americano” já não é visto com os mesmos olhos. A cultura da competição resultou não só em seguidas crises econômicas pelo mundo, mas na ascensão de diversos problemas físicos e emocionais relacionados à pressão da sociedade competitiva em que vivemos. A depressão, por exemplo, se tornou a doença que mais incapacita profissionais no mundo em 2014, atingindo 7% da população mundial. Mas nem só em “incapacitados” resulta a doentia civilização ocidental atual. Há também os filhos dela, os que nascem e se criam nesse ambiente, aprendem com ele e se tornam produto de seu meio.
Em O Abutre acompanhamos justamente um desses “produtos”. O protagonista, vivido pelo excelente Jake Gyllenhaal (o que há de errado com a Academia que não indicou esse cara?), é Louis Bloom, um rapaz que, após ver uma equipe de filmagem registrando cenas de um acidente para vender para os jornais televisivos, se interessa pela profissão e vai atrás de começar sua carreira, dirigindo pelas ruas de Los Angeles à noite enquanto intercepta o rádio da polícia, atrás de acidentes para registrar.
Engana-se quem pensa que O Abutre é meramente uma crítica à “indústria da violência” que domina os noticiários da televisão. Críticas à figuras da comunicação nos Estados Unidos semelhantes aos nossos Datena e Marcelo Rezende são, com certeza, bem evidentes e necessárias, mas o filme é inteligente ao evitar que a narrativa se limite à isso, indo às origens do problema e criticando toda a mentalidade individualista e competitiva que dita nossa sociedade. O roteiro de Dan Gilroy consegue evitar tal visão limitadora inserindo alguns personagens que apresentam notório incômodo com a banalização da violência tão presente em seus empregos na televisão. Já a direção, também de Gilroy, o faz principalmente na construção do primeiro ato.
Observe, por exemplo, na montagem acima, que mostra uma passagem dos primeiros minutos de projeção, quando já vemos Louis dirigindo pelas ruas de Los Angeles e a cena alterna planos de olhares que expressam desejo com planos que exibem carros caros nas vitrines de concessionárias e caixas eletrônicos, estabelecendo desde então a motivação do personagem: dinheiro e bens materiais. Tal construção também é perceptível mais adiante no filme, quando “Lou” senta-se na mesa do programa de notícias da emissora onde trabalha e vemos o personagem apenas pela tela de uma câmera, enquanto todo o resto do plano está desfocado. Ou seja, além de realização financeira, Louis busca ascensão, poder, mais um dos motes da nossa deturpada sociedade.
Pela fotografia, há a construção de um cenário quase apocalíptico na Los Angeles noturna. Pouquíssima iluminação por postes e elementos extra-cena, deixando as principais fontes de luz serem justamente as lojas e comércios locais, retratando como a cultura do consumo esvaziou de vida a cidade. Essa escolha também resulta em planos extremamente sombrios que refletem a alma do protagonista, que muitas vezes só pode ser visto graças a reflexos vermelhos e verdes que desenham sua silhueta. Tais cores, aliás, são uma excelente escolha, podendo ser interpretadas como os reflexos da violência (vermelho, também presente no carro de Lou [o mesmo que o personagem almeja no começo do filme]) e do dinheiro (verde) sobre indivíduos desprovidos de personalidade e individualidade.
E se falta individualidade (e sobra imponência) ao sociopata que protagoniza o filme, isso deve-se à magistral performance de Jake Gyllenhaal (em seu melhor trabalho até aqui). O ator demonstra incrível apatia e desinteresse ao conversar sobre pessoas e assuntos fora de sua rotina, o contrário do que vemos quando Lou fala sobre seu plano de negócios e lucros. Jake aqui mantém uma postura curvada que, aliada ao corpo assustadoramente magro do ator (que se transformou para o papel), dão maior destaque para os olhares arregalados do personagem e, com o contraste trazido pela iluminação, muitas vezes tem sua imagem semelhante à de uma caveira. A composição vocal de Gyllenhaal também é extremamente competente, mantendo sempre um tom ameno, calmo, que disfarça a figura doentia e violenta oculta por trás da frágil aparência. A cena inicial, em que Lou se aproxima pacificamente de um segurança até atacá-lo, é um bom exemplo de como o personagem mantém uma persona violenta e cruel por trás do semblante pacífico.
Mas é por meio dos relacionamentos de Lou que percebemos a proposta de Gilroy com seu filme. Observem, por exemplo, que o personagem mais humano de O Abutre é justamente o que não assiste televisão, Rick, o assistente do principal. Inclusive, a diferença entre os personagens é muito bem estabelecida no momento em que ambos filmam um confronto entre a polícia e criminosos numa lanchonete. Quando o filme nos mostra a visão de Rick, há uma maior preocupação com o ambiente, que pode ser vista no olhar preocupado e fala insegura do personagem, além de podermos observar que todo o plano está focado em boa parte da cena. Já quando acompanhamos o confronto sob o escopo do protagonista, o foco é todo na tela de sua câmera, com todo o ambiente em volta desfocado, ressaltando sua sede pelo registro da violência, seu ganha pão. A cena, inclusive, mais uma vez usa a iluminação verde no rosto de Lou para destacar sua motivação, tornando o momento ainda mais rico de significado.
O relacionamento de Lou com Nina (Rene Russo) é outro com destaque no filme. A diretora do programa que exibe as cenas registradas pelo protagonista não demonstra qualquer incômodo ou questionamento moral ou ético quando o freelancer a entrega imagens de pessoas recém-assassinadas e invasões domiciliares. Inicialmente podemos acreditar que seja parte da crítica aos meios de comunicação, mas mais tarde, quando descobrimos que a personagem precisa lutar para garantir seu emprego, fica claro que a perda de humanidade é parte da construção da figura que luta por seu espaço no mundo doentio retratado.
Não é difícil imaginar, portanto, que Lou se adapta e se enturma com os habitantes desse ambiente mórbido, algo que é muito bem estabelecido ao notarmos a facilidade com que o personagem se relaciona com os outros funcionários da emissora, trocando elogios e sorrisos pelos corredores da empresa. Também é esperado que, se sobreviver ao arriscado estilo de vida que adotou, Louis não só terá sucesso profissional, como se tornará referência, visto que a competitividade do sádico mundo em que vivemos cria a cultura de premiar resultados. “O crime compensa”.
Muito além das críticas à mídia sedenta por sangue (já bem estabelecidas em filmes como A Montanha dos Sete Abutres, obra-prima de Billy Wilder), O Abutre satiriza o sistema que proporcionou e originou tal contexto. Os meios de comunicação, assim como os sociopatas retratados aqui, são fruto de décadas (ou séculos?) de um sistema falho que desvaloriza o ser humano e nossa capacidade de empatia. É uma obra diferente por, de forma até irônica, nos apresentar um personagem com valores completamente deturpados, desprovido de qualquer senso ético, e que mesmo assim é premiado, pois vive em uma sociedade que corrobora esse comportamento. E é bom que o longa seja diferente, pois enquanto não formos capazes de compreender que os “paparazzis da morte” não são a raiz do problema, apenas consequência, filmes como O Abutre ainda serão necessários.