“O Anjo” se passa num período violento da história argentina e sua narrativa parece permeada por uma sensação de que algo está fora do lugar. A história real do assassino em série Carlos Robledo Puch, contada aqui por Luis Ortega (diretor e corroteirista, com Sergio Olguín e Rodolfo Palacios), tem início em 1971, quando o país já se encontrava sob uma ditadura militar – ainda que não aquela célebre por sua violência genocida, iniciada apenas em 1976. Apesar de fazer poucas referências abertas à política (a acusação, em determinado momento, de que Carlos e seu comparsa seriam guerrilheiros e as ameaças de torturas com choque elétrico), o filme parece mergulhar seus personagens numa atmosfera sombria, reveladora de uma sociedade claramente brutalizada.
Na verdade, o maior mérito de Ortega em “O Anjo” é tornar o protagonista uma espécie de encarnação perfeita de seu tempo, ao mesmo tempo um mensageiro da morte e um jovem deslocado das normas sociais, tentando encontrar seu lugar no mundo. Mérito que merece, claro, ser compartilhado com Lorenzo Ferro, o excelente intérprete de Carlos, dotado de fato de uma imagem angelical que só tornam mais assustadoras suas ações. Quando mata alguém em cena, e isso acontece algumas vezes no filme, o personagem parece agir como uma criança curiosa, aparentemente indiferente à gravidade do que está fazendo.
Outra figura bem construída no filme é a de Ramón (Chino Darín), comparsa e quase amante de Carlos – há uma tensão sexual entre os dois que nunca se concretiza. Um pouco mais velho que o protagonista, ele também carrega certa ingenuidade, ao mesmo tempo que é uma espécie de prisioneiro de sua esquisitíssima família de criminosos. Aliás, os momentos em que todos esses personagens se reúnem – Carlos, Ramón, seu pai José (Daniel Fanego) e sua mãe Ana María (Mercedes Morán) – estão entre os mais interessantes de “O Anjo”, por possuírem uma estranheza que Ortega consegue manejar muito bem. Há sempre a impressão de que qualquer coisa pode acontecer ali, ainda que o inverossímil jamais predomine.
Essa questão familiar é cara a “O Anjo”. Na deslocada narração em voz over que abre o filme (trata-se do único momento em que Ortega usa esse recurso), Carlos se refere ao fato de ser filho de pais decentes, trabalhadores e carinhosos – algo comprovado posteriormente na narrativa. A explicação para seu comportamento violento não estaria, portanto, na criação que recebeu, ao contrário de Ramón. O filme parece afirmar que o crime pode vir de muitos lugares, das motivações mais diversas, e que nem sempre é possível explicá-lo totalmente.
Há aqui ecos de um cinema estadunidense setentista sobre personagens semelhantes a Carlos, especialmente de “Terra de Ninguém” (1973), o excelente primeiro filme de Terrence Malick, cujos protagonistas, também portadores de certa inocência juvenil, matam movidos por impulsos nunca totalmente compreensíveis. Mas “O Anjo” remete mais diretamente a outro exemplar recente do cinema argentino: “O Clã” (2015), de Pablo Trapero, sobre a também assustadora história real de uma família de criminosos na Buenos Aires do início da década de 1980. Ambos os filmes possuem certo impulso pop, manifesto na trilha sonora recheada de rock, nos movimentos arrojados de câmera e na estilização visual, bem como um tom de estranheza que os torna espécies de tragicomédias de horror. Não à toa, Ortega dirigiu, em 2015, uma minissérie sobre os mesmos personagens apresentados em “O Clã”.