Eu entendo que traduzir Kafka e o kafkiano para a linguagem audiovisual tem seus percalços, principalmente quando se trata de suas histórias labirínticas sobre burocracia, cujas leituras exaurem o espectador em contato com longos diálogos que são becos sem saídas e encontros com personagens inúteis que vão empurrando o protagonista para um outro personagem inútil, transformando o livro (positivamente) em uma experiência que suga a alma. Entre os elementos mais inesquecíveis da leitura de O Castelo para mim estava naquelas situações em que K. ia encontrar uma pessoa desesperado para saber uma informação simples e, sem sua permissão, a pessoa contava toda sua história de vida, com Kafka escrevendo um parágrafo que durava 3 páginas, fazendo tanto o leito quanto o seu protagonista esquecem do motivo de estarem tendo aquele diálogo. Mas será que um cineasta vai querer fazer propositalmente um filme moroso? O que um diretor faz com este dilema da tradução é a chave para pensar O Castelo, filme russo dirigido por Aleksey Balabanov em 1994.
Apesar de ser um grande filme, precisamos admitir que O Processo de Orson Welles sofre deste mesmo problema de tradução literária, na medida que é um filme extremamente ágil, em contraposição ao cansaço lentamente construído por Kafka, mas por outro lado ele consegue impregnar a essência do kafkiano perfeitamente em sua estrutura, seja pela montagem completamente desterritorializada, seja pela magistral mise-en-scène que distorce os planos e altera as percepções e proporções do mundo. Ou seja, entendemos e sabemos que desde Welles é possível adaptar o kafkiano a uma espécie de surrealismo ágil potencializado por imagens e sons. Então, o que faz Balabanov? Pelo menos, é certo que o diretor russo também adere uma montagem deslocalizante, que somada a opção de jamais dar uma mínima noção de espacialidade da vila, sem nenhum plano geral, levando seu protagonista K. de casa em casa pela neve, sem se entender muito bem por onde ele está. Por outro lado, a obsessão com a ida ao Castelo, figura inalcançável e imagem impossível, é trabalhada com pobreza e entregue sem muito interesse por Balabanov, que ocasionalmente insere sequências de sonho no filme para trazer à fórceps esta imagem do Castelo, que se torna uma imagem vazia conforme se repete, ao invés de ser uma anáfora.
Não sei como deve ser a experiência com a adaptação para quem nunca leu O Castelo, mas fico com a impressão de que no filme as relações de causa e consequência fazem menos sentido ainda, com K. a cada cena encontrando um novo personagem sem muito contexto, o que de certo modo não deixa de ser uma confusão, proposital ou não, interessante para se somar ao clima de que a busca para tentar chegar ao castelo faz menos sentido. Só que se no livro de Kafka cada encontro com cada personagem se revelava a descoberta de um universo à parte, como já mencionado, como se em cada capítulo o protagonismo fosse dedicado a esses outros personagem (por exemplo: como não esquecer das histórias de Frieda, da família de Barnabás e Pepi?), no filme de Balabanov a rápida passagem de um encontro a outro permite menos este investimento e mais uma impressão imediata, que se limita ao mundo das aparências, com o diretor preferindo evidenciar na excentricidade da população (visualmente e na maneira de agir) e seus costumes.
Talvez essa seja minha principal restrição ao filme de Balabanov, que decide traduzir o kafkiano como uma espécie de comédia diante do excêntrico, ignorando o peso da burocracia em detrimento do estranhamento. A partir de elementos que não tem no livro, como porcos que saem de um buraco na parede para atravessarem uma sala, aceito como um costume local; crianças que estão por todo lado de maneira bizarra; e uma música onipresente, Balabanov vai querendo interromper o fluxo normal da ação com essas aleatoriedades que vão interrompendo as cenas e dão um tom pesadelístico à jornada. O grande problemas de tais escolhas é que elas me parecem uma simplificação de toda a potencialidade labiríntica do livro que se resume a uma espécie de cinema de atrações para idiotas, concentrada nas impressões visuais e sonoras mais imediatas possíveis, como se estivéssemos vendo uma versão russa do Terry Gilliam e isso não é muito um elogio.
Ao ler O Processo e O Castelo, sempre tive a impressão de que todos os personagens, com exceção do protagonista, são extremamente sérios e levam aquelas regras sem sentido que devem seguir igualmente a sério, o que fazia de toda aquela jornada concomitantemente mais verossímil internamente, mas cada vez mais absurda também. Então, quando Balabanov opta por olhar este mundo como uma piada, fazendo de seus personagens soem como piada, olhando para O Castelo quase como uma sátira, boa parte desta crença no absurdo se perde para mim e, consequentemente, a potencialidade do filme. É claro que os dois assistentes do agrimensor são imbecilmente fiéis ao que Kafka descreve este talvez seja o ponto em que melhor as duas mídias se encontram, mas todo o resto dos personagens são levados a um nível extremo de caracterização para agirem como pessoas estranhas. Aliás, mais do que isso, pois o filme parece fazer de todos extremamente maliciosos, como se agissem em um complô coletivo contra K., o que novamente me parece contrário ao livro, na medida que parece um fator importante eles seguirem todas as regras insensatas daquele mundo sem muito questionamento ou opinião diante delas, como se fossem leis naturais, o que aí sim deixa a história de Kafka mais absurda ainda.
Em termos de liberdades que O Castelo se dá com relação ao seu livro base, é curioso como parece haver um posicionamento por parte de Balabanov com relação a uma ambiguidade deixada pelo livro, já que desde o início ele parece tratar como K. malicioso, dando a entender que ele de fato não é o agrimensor, mas sim um cínico picareta e um grande tarado que quer todo rabo de saia que vê. Por outro lado, como o livro é inacabado, também me pareceu uma saída bem condizente e respeitante ao espírito do livro finalizar com a troca identitária entre Brunswick e K., que tem como consequência a despersonalização total do personagem. Ou seja, se Balabanov posiciona K. como um picareta desde o início, sua adaptação também não deixa de ser um conto moral sádico e surrealista, narrando aquilo que irá acontecer com aqueles que tentam se aproveitar do mundo ao seu redor e, sem perceber, toma uma rasteira dele, até ser totalmente fadado ao esquecimento.