Realizada on-line para o Brasil inteiro, a 31ª edição do Festival Internacional de Curta-Metragens de São Paulo, o Kinoforum, traz um vasto panorama da produção recente de curtametragistas de todo o globo, dos mais experientes aos estreantes. Entre os veteranos encontra-se Ivan Cardoso, que faz pelo evento a estreia brasileira de seu novo filme “O Colírio do Corman Me Deixou Doido Demais“, já exibido em Rotterdam e na Rússia.
A trajetória de Cardoso se confunde com a história da arte brasileira a partir do começo de 1970, quando o poeta Torquato Neto foi imortalizado pela lente Super-8 do cineasta em “Nosferato no Brasil“. Marcando época com sua série de curtas “Quotidianas Kodak“, ele não demorou para chegar no longa-metragem, onde misturando monstros, comédia e experimentações visuais através de títulos como “O Segredo da Múmia” e “As Sete Vampiras“, imortalizou o subgênero “terrir” no Brasil. Em paralelo, seguiu realizando curta-metragens com foco no sensorial e desenvolveu uma sólida carreira como fotógrafo.
Tendo passado dez anos sem filmar (porém ainda assim lançando longas e curtas), o cineasta utilizou esse período para se aperfeiçoar sua técnica de desenhar diretamente na película 35 mm (que já pode ser vista em trabalhos anteriores, como no curta “Hi-Fi“, de 1999). A primeira coisa que vemos em “O Colírio do Corman Me Deixou Doido Demais” é a tradicional contagem regressiva que estereotipicamente precede o início de um filme. Aqui ela não é exibida de forma protocolar e interrompida por um corte abrupto, mas mesclada com os desenhos em movimento de Cardoso na película e sucedida por mais uma sequência destes, embaladas por uma música dissonante que prepara o espectador para o que está por vir.
O conceito da experimentação por desenho na película é integrado a uma narrativa: efeito colateral do colírio aplicado por Roger Corman no próprio Ivan Cardoso. O nonagenário cineasta estadunidense aplica o dito colírio em uma sequência toda orquestrada ao estilo “cientista louco”, que Cardoso conhece tão bem e registrou de forma célebre no cinema brasileiro através de Wilson Grey em “O Segredo da Múmia“. Não é preciso ser um conhecedor exímio da filmografia cormaniana para pegar o conceito, citação direta a “O Homem dos Olhos de Raio-X“. Longa presente metatextualmente no novo trabalho de Cardoso a todo momento, o clássico de Corman inclusive chega a aparecer de forma direta com um de seus trechos reproduzidos no curta brasileiro.
O efeito imagético do colírio alucinógeno não se limita à reprodução de desenhos na película virgem, o que por si só já seria digno de registro (e “O Átomo Brincalhão“, curta de 1961 dirigido por Roberto Miller, é calcado unicamente nisso). O que segue a breve sequência introdutória protagonizada pela dupla de cineastas é um rico mosaico que mistura filmagens do próprio Cardoso, anteriormente utilizadas em uma série de filmes ao longo de sua carreira, trechos de filmes nacionais e estrangeiros diversos, imagens de arquivo, videoclipes e muito mais.
“O Colírio do Corman” é um passeio pela mente de Ivan Cardoso. O cineasta possui um desenvolto estilo de montagem que remete à colagem, e talvez esse seja um de seus trabalhos mais afiados nesse sentido. Um piscar de olhos do espectador pode significar perder um elemento que passa por um segundo em meio à turba multicultural que preenche os dezoito minutos de duração do curta. De Anna Karina a Neusinha Brizola, de Hélio Oiticica a Zé do Caixão, o filme articula uma série de imagens em praticamente um só fôlego (com direito apenas a pequenas pausas que simulam vinhetas de anúncio de trailers televisivos, recurso anteriormente utilizado pelo diretor no longa “O Bacanal do Diabo“). Essa sequência quase ininterrupta se beneficia de uma duração enxuta e da montagem inteligente e criativa que é de praxe nos curtas cardosianos. Se seus longas realizados entre os anos 1980 e 2000 são mais populares e se encaixam, de certa maneira, em uma linguagem mais comercial, seus curtas flutuam livremente chegando à arte de vanguarda.
Os desenhos na película se integram a todas essas imagens. Mensagens são escritas ao redor de Glauber Rocha, Elvira Pagã ganha caninos vampirescos, Haroldo de Campos solta raios-X através de seus olhos. Cardoso não tem pudor em desenhar sobre a película e ressignificar suas próprias imagens, feitas anos, décadas atrás. De certa maneira, “O Colírio do Corman” é, como um todo, um filme sobre a ressignificação da imagem. Um espectador mais versado na filmografia cardosiana vai identificar trechos de “A Múmia Volta a Atacar“, “A Meia-Noite com Glauber“, “H.O.“, “Heliorama” e tantos outros trabalhos do diretor sendo narrativamente incorporados à espiral alucinógena do colírio e imageticamente alterados através do desenho.
O que Cardoso faz seria o suficiente para desagradar uma visão mais preciosista em relação a preservação da imagem, não de todo desprovida de um ponto. Não obstante, uma vez que todos os seus próprios trabalhos ali utilizados possuem outras cópias, sejam em película ou digitais, o diretor não economiza o material que possui. É o princípio fundamental da colagem, o de utilizar os recursos que estão à sua disposição, sejam estes catálogos, jornais, panfletos, revistas ou fotografias, muitas vezes guardados por anos imemoráveis, na construção de algo novo através de uma alteração em sua própria estrutura.
O cinema brasileiro tem grandes nomes no cinema-colagem. Rogério Sganzerla é um exemplo que dispensa apresentações (tendo inclusive ganhado o prêmio de “melhor colagem antropofágica” por “Tudo é Brasil” na bizarra edição de 1998 do Festival de Brasília, marcada pela invenção de prêmios à moda freestyle). Carlos Adriano, de “A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha” pode ser citado como outro digno exemplar. Ivan Cardoso é um titã dessa técnica, com um rol sólido de filmes dignos de lhe garantirem esse título.
Sendo comumente mais lembrado como mestre do “terrir”, ao cineasta muitas vezes não é dado o devido crédito que ele merece enquanto um desafiador da linguagem cinematográfica tradicional, enquanto alguém que consegue concatenar uma rica bagagem cultural em imagens de forma criativa, divertida e inteligente, enquanto um contemporâneo de Glauber, José Mojica Marins, Torquato e irmãos Campos que soube aprender com todos estes e com quem mais aparecesse. Em cada filme de Ivan está um pouco de todas as suas influências, não de forma gratuita e derivativa, mas como citações verdadeiramente construtivas ao autor, ao filme e ao espectador.
“O Colírio do Corman Me Deixou Doido Demais” é um dos melhores trabalhos realizados por Cardoso no século XXI. Tem tudo o que faz de seus filmes memoráveis, dos curtas mais herméticos aos longas “terrir” mais palatáveis. É simultaneamente uma carta de amor a tudo o que fez a cabeça do diretor e um tratado antipreciosista sobre a mutabilidade das imagens. Em matéria de cinema, não falta nada nos dezoito minutos de projeção. Paralelamente riquíssimo em informação e em técnica e econômico em duração, o filme é também um lembrete de que os melhores curtas muitas vezes conseguem trabalhar conceitos e surpreender o espectador de maneira mais efetiva que muitos longas. A alguém pouco versado na filmografia de seu autor, o curta funciona como um impactante cartão de visitas: quem se aventurar a desbravar os títulos anteriores da obra de Cardoso agora já sabe o que encontrará pela frente, e provavelmente o fará, visto que assim que “O Colírio do Corman” chega aos créditos a vontade é voltar ao início para assistir mais daquilo tudo.