Mais interessante que a repetição de traços marcantes de seus filmes anteriores, é como Paul Schrader combina esses com um estilo mais mundano, menos ascético e desdramatizado, em momentos específicos (os melhores) de O Contador de Cartas. A austeridade do protagonista Bill (Oscar Isaac) molda o tom da narrativa, mas Schrader não se priva da abertura à hiperestilização da violência e à concretização visual do romantismo quando julga necessário.
A fricção entre esses dois tipos de cinema, um de inspiração bressoniana e o outro mais adepto de uma alta intensidade dramática, resulta num filme muito eficaz, já que o diretor sabe trafegar bem por ambos os caminhos. É como se Gigolô Americano (1980) ou O Dono da Noite (1992) fossem repentinamente invadidos por composições visuais saídas de Cães Selvagens (2016), no caso das cenas na prisão de Abu Ghraib, e por um encantamento romântico quando explora a aproximação entre Bill e La Linda (Tiffany Haddish).
O desenvolvimento dessa última relação, por sinal, funciona como um belo e prazeroso respiro numa narrativa soturna, não raramente lúgubre. Mesmo que a opção de Schrader por mais uma vez reencenar o final de O Batedor de Carteiras (1959), de Bresson, permita uma leitura teleológica do envolvimento amoroso dos dois personagens, ao longo do filme soa bastante possível que ele simplesmente não aconteça. Quando, por exemplo, Bill não alimenta a tentativa de flerte iniciada por La Linda no bar de um hotel, O Contador de Cartas parece se conformar com a impossibilidade desse romance. Há aqui, portanto, um antideterminismo muito bem-vindo, que desestabiliza algumas certezas do filme.
Ainda assim o romance nasce e é um mérito de Schrader imprimir nele uma impressão de naturalidade. Não se trata de uma paixão arrebatadora, que eleve muito o tom de O Contador de Cartas, mas de um afeto formado gradualmente, maduro, mas também doce. A cena do jardim de luzes é a chave: destoante diante da economia dramática bressoniana usada por Schrader, mas coerente com a construção da relação entre os dois personagens. E o excesso visual desse momento é também muito bem explorado pelo diretor, já que funciona como a revelação de um interesse amoroso ainda não concretizado, ao invés de ser a culminância desse envolvimento. Tudo tem seu tempo.
Mas mesmo quando se dedica a repetir coisas já feitas anteriormente em seu cinema, Schrader consegue manter intacta a força dramática de O Contador de Cartas. O Batedor de Carteiras (e por extensão Crime e Castigo) é uma matriz sempre geradora de questões poderosas, de angústias existenciais facilmente reconhecíveis, além de perfeitamente dominada pelo diretor após algumas revisitas. Aqui, ela se une a um componente político atual dos Estados Unidos para produzir um belo comentário sobre culpa e redenção.
Texto originalmente escrito para nossa cobertura do Festival do Rio 2022. Acompanhe aqui.