“O Doutrinador”, de Gustavo Bonafé, tem uma relação imediata com o bolsonarismo que parece de fácil captação. Trata-se, afinal, de um filme fortemente marcado pelo discurso da antipolítica, que desacredita os procedimentos do Estado democrático de direito e apela muito frontalmente para a violência como solução de problemas sociais complexos. O roteiro adere sem meios termos a uma série de lugares comuns que alimentaram a eleição do ex-capitão do Exército à Presidência da República, ou que ao menos circulam bastante por setores médios da sociedade, como as críticas genéricas à burocracia estatal, à ineficiência dos serviços públicos e à corrupção generalizada na política – essa última também entranhada nos pequenos atos cotidianos de desonestidade, matriz do famigerado “jeitinho brasileiro”.
No entanto, há algumas inesperadas nuances na construção do discurso do filme. Mais do que mirar em exemplos recentes de desvios para atacar políticos ou partidos específicos, algo feito, ainda que sob a máscara do “contra tudo que está aí”, por “Polícia Federal – A Lei é Para Todos” (2017), “O Candidato Honesto” (2014), “O Candidato Honesto 2” (2018) e “O Mecanismo” (2018), “O Doutrinador” parece demonstrar um ódio genuíno ao Estado e à política, se aproximando de uma crítica bastante destrutiva (anarquista?) do primeiro e da defesa da rebelião popular violenta como forma de transformação da segunda. Não à toa, o herói do título (Kiko Pissolato) nasce numa manifestação capitaneada por black blocs (ou algo parecido), que rapidamente seriam rotulados de “terroristas” e “vagabundos” pelos bolsonaristas.
Além disso, há referências negativas explícitas a deputados pastores evangélicos, segmento de fundamental importância na base de apoio a Jair Bolsonaro, e à bandeira da privatização de empresas públicas, carregada pelo presidente eleito. Os créditos finais são acompanhados pela música “Ostentação a pobreza”, do rapper Rincón Sapiência, que fala abertamente da desigualdade social estruturante da sociedade brasileira e critica os defensores da redução da maioridade penal, outro tema caro a Bolsonaro e seus apoiadores.
Na verdade, “O Doutrinador” é uma espécie de filho degenerado de “Tropa de Elite” (2007) e de sua continuação. Como o Capitão Nascimento (Wagner Moura) do díptico de José Padilha, Miguel é um policial de elite cansado da corrupção e de suas consequências diretas no funcionamento de serviços públicos básicos. Ambos, após terem seus filhos atingidos pela violência urbana, transformam essa indignação em agressividade contra políticos corruptos: Nascimento, em “Tropa de Elite 2” (2010), espanca o secretário de segurança do Rio de Janeiro; Miguel mata o governador do estado (Eduardo Moscovis) e, posteriormente, vários de seus aliados.
A referida degenerescência, no entanto, nasce da incapacidade de “O Doutrinador” de atribuir maior complexidade aos seus personagens, talvez o maior mérito de “Tropa de Elite”. Nascimento é uma figura dúbia, cujos atos geram consequências concretas (nem sempre desejadas) nos que o cercam. Ele e seu pupilo, Matias (André Ramiro), perdem relações afetivas em razão de escolhas violentas que fazem. E, vale lembrar, todo o ódio ao “sistema” manifesto pelo primeiro personagem é canalizado, ao final de “Tropa de Elite 2”, para a atuação na própria política, reconhecida como forma mais efetiva de luta contra a corrupção. As perdas de Miguel, por outro lado, se dão antes de sua transformação em Doutrinador: o filme já começa com o protagonista divorciado e a morte violenta da filha é o gatilho para sua atuação como vingador mascarado. Na verdade, ele até ganha uma nova relação ao longo da história: a amizade com a hacker Nina (Tainá Medina), que o ajuda na missão de eliminar políticos corruptos.
Mas, exceção feita a essa significativa conclusão de “Tropa de Elite 2”, de fato parece possível aproximar “O Doutrinador” dos dois filmes de Padilha, como também de “Polícia Federal – A Lei é Para Todos”, de “O Candidato Honesto” e sua continuação e de “O Mecanismo” num aspecto talvez determinante para a ascensão de Bolsonaro ao poder: a representação estereotipada dos políticos. Os corruptos, em todos esses filmes, são glutões que vivem nababescamente e gargalham enquanto enchem os bolsos com dinheiro público. Os poucos honestos, caso do deputado Fraga (Irandhir Santos) de “Tropa de Elite 2”, são sonhadores indignados, apegados a seus ideais. Não há muito espaço para nuances na construção desses personagens.
Essa visão da política brasileira como meio povoado por homens e mulheres desprezíveis, repulsivos e criminosos, ainda que guarde, claro, alguma semelhança com a realidade (algo explicitado nas imagens da votação do impeachment de Dilma Rousseff e nos documentários realizados sobre esse processo), alimenta a descrença nas instituições e a expectativa em torno de um salvador capaz de moralizá-las impondo autoridade com a violência necessária. Nesse sentido, o culto a Bolsonaro (mas também ao juiz, e agora ministro, Sérgio Moro) guarda semelhanças com as conhecidas celebrações, pela plateia, dos atos de Nascimento e com a forma positiva como “O Doutrinador” apresenta seu herói.