O Estranho é muito efetivo no estabelecimento de uma atmosfera de mistério transcendental em seus primeiros minutos. Os diretores Flora Dias e Juruna Mallon abrem o filme com sucessivos personagens posicionados nos mesmos espaços de Guarulhos em temporalidades distintas, de fins do século XV ao presente, anunciando o que parece ser uma narrativa de idas e vindas à lá Cloud Atlas (2013), de Lana e Lilly Wachowski. Mas essa expectativa é logo frustrada pela revelação de que se trata, na verdade, de um filme construído numa lógica de camadas arqueológicas, de passados diversos que se sobrepõem deixando vestígios, quase sempre despercebidos, nos tempos atuais. É nesse sentido que os diferentes tempos interagem na narrativa.
E O Estranho é de fato muito bom enquanto segue articulando esse princípio com o enredo principal, no qual as personagens interpretadas por Larissa Siqueira, Patricia Saravy e Antonia Franco se relacionam de variadas maneiras com tais passados, seja através de uma busca pela ancestralidade, seja na fascinação por vestígios literalmente arqueológicos encontrados nos arredores da pista do aeroporto de Guarulhos. Aliás, é fascinante o movimento dos diretores de olhar para um lugar tão associado à modernidade urbana buscando não só o que está às margens, mas também abaixo do concreto. Essa relação sempre misteriosa entre o dentro e o fora, o sobre e o sob, alimenta a aura de estranhamento místico que organiza o filme.
Com o avançar da narrativa, no entanto, O Estranho vai se abrindo em demasia, incluindo outros personagens e suas porções de drama que diluem o olhar rigoroso proposto no início. São os casos do funcionário do aeroporto interpretado por Rômulo Braga e dos adolescentes, protagonistas de cenas que parecem perdidas no todo fílmico, mesmo que eventualmente boas se tomadas isoladamente (como a da dança no free shop). Esse movimento de abertura se acentua quando Flora e Juruna optam por incluir momentos documentais, que produzem efeito semelhante àquele de Pajeú (2020), outro exemplar brasileiro recente sobre ecos do passado (ancestral, colonial, escravista, genocida) numa cidade contemporânea: didatizam em excesso as intenções da obra.
O Estranho busca, portanto, se colocar ao lado de outros filmes na luta contra o presentismo apagador dos traços incômodos da história do Brasil que sobrevivem hoje, e faz isso por meio de um gesto de escavação de vestígios materiais. Mas, apesar do flerte instigante com o mistério, a articulação truncada entre encenação e documentário impossibilita o surgimento de algo verdadeiramente envolvente, que funcione plenamente enquanto fruição narrativa. Falta crença nos poderes da ficção.