Em 1964, o pioneiro do cinema documental brasileiro Eduardo Coutinho se viu forçado a abandonar as filmagens daquele que viria a ser uma das maiores obras do cinema, Cabra Marcado para Morrer, em função do golpe militar. Tamanha era a frontalidade da oposição do cineasta ao momento político do país que a realização de um filme que confrontasse diretamente o regime militar foi descartada, forçando-o a recorrer a ficção como forma de combate a ditadura. A partir disso, junto com a sua insaciável veia criativa, que nasceu O Homem que Comprou o Mundo, um filme extremamente particular ao buscar um retrato crítico do cenário nacional enquanto surfava na onda de comédias-pastelão que dominavam as bilheterias.
Estrelando Flávio Migliaccio como o propriamente nomeado José Guerra e auxiliado por um elenco recheado de estrelas como Marília Pêra, Raul Cortez, Hugo Carvana, Paulo César Pereio e Nathalia Timberg, o filme concentra suas maiores forças e fraquezas justamente na facilidade e simplicidade com que Coutinho escolhe colocar o dedo na ferida. Seja por uma certa falta de aptidão com o cinema ficcional ou por decisão própria de recorrer aos estilismos mais populares da época, O Homem que Comprou o Mundo patina entre crítica certeira ao sistema econômico vigente e uma série de piadas relativamente aguadas que acabam deteriorando o ritmo, ainda que em muitos momentos consigam se sustentar devido ao grande carisma e talento dos atores envolvidos. No entanto, nunca deixa de ser um filme que sabe exatamente como se posicionar de forma a escapar dos olhares da censura, permitindo sempre que o olho de um telespectador aguçado capture exatamente os sentimentos que Coutinho deseja transpor.
Na trama, José Guerra é um humilde funcionário público, apaixonado pela linda e simpática Rosinha, que no meio da noite presencia um crime contra um figura misteriosa e vai ao seu socorro. O que ele não poderia esperar é que ao demonstrar solidariedade seria recompensado como a maior fortuna do mundo, um cheque no valor de cem mil “strikmas”, uma antiga moeda reavaliada para o valor de dez trilhões de dólares. Inocente, ao tentar descontar o cheque ele é encarcerado enquanto as autoridades debatem como resolver a questão. Em meio a recorrentes convenções do gênero, Migliaccio injeta uma honestidade simples porém nunca ingênua em Guerra, este sempre alerta as maquinações do sistema porém ainda incapaz de aptamente montar qualquer forma de oposição. Mesmo assim, ainda que um pouco superficiais, as caricaturas de Coutinho ainda conseguem reverberar com incisividade até hoje, principalmente no que diz respeito à representação das instituições como instrumentos de manutenção do poder.
Guerra é funcionário público do fictício País Reserva 17, e com sua recém-adquirida fortuna passa a ser almejado pelos governos das Potências Anterior (EUA) e Posterior (URSS), assim como da MOSI, uma organização claramente inspirada nos princípios da Maçonaria e com figurino deveras semelhante àqueles da Ku Klux Klan. E é justamente nessa temática direta o suficiente para indicar a obviedade e discreta o suficiente para escapar aos olhos dos censores que reside a maior força do filme. Nunca optando por uma solução simples, até mesmo as nomenclaturas Anterior e Posterior das grandes nações servem mais como um contraponto entre os radicalismos envolvidos do que um maniqueísmo. A chave, como sempre no cinema de Coutinho, reside na figura do trabalhador, e ainda que uma figura quase caricata, José Guerra ainda conta com a típica simpatia honesta pelo qual o diretor é aclamado. E é sempre por sua ótica honesta que o filme perpetua suas maiores críticas, nunca como um ataque a sua suposta ignorância, mas como uma tentativa de inviabilizar a noção popular. No final, cansado de tantas confusões, o protagonista embarca numa montagem de fuga social, se tornando recluso, perdido na natureza. A mensagem é clara: não há espaço para o cidadão comum que mundo que estava se formando.