Falar de O Homem Que Ri num especial sobre Halloween é como falar de Carvel Lee Ausborn, o “Mississippi Slim”, num especial sobre Rock. O cantor Hillbilly não foi um rockeiro, mas é impossível ignorar a influência de seu estilo em Elvis Presley. Da mesma forma, o filme de Paul Leni, junto a expoentes do Expressionismo Alemão como O Gabinete do Doutor Caligari, Nosferatu, Fausto e Metrópolis, criou as bases para o gênero hoje conhecido como Terror.
A primeira informação visual que temos do filme é o Rei James II (Sam De Grasse) dormindo em sua cama. O ano de 1490, escolhido para começar a história, remete ao período imediatamente posterior à Guerra das Duas Rosas, quando uma Inglaterra empobrecida e dilacerada por mais de um século de conflitos tinha a nobreza desconectada ao povo (é pertinente dizer que O Homem Que Ri toma liberdades poéticas, pois o rei da Inglaterra em 1490 era Henrique VII). Este recorte temporal dialoga com os Estados Unidos de 1928, ano de lançamento do filme, precisamente no que diz respeito ao antagonismo de dois grupos sociais. Os “loucos anos 20”, consequência direta da Primeira Guerra Mundial, dividiram o país entre “campo” e “cidade”, com os membros do primeiro grupo acusando o segundo de “destruir tudo o que tornava a América grande”.
Leni, alemão chegado ao país um ano antes, captou esta tensão e tentativa de “volta às origens” – que acabou por se concretizar na eleição de 1928, com a vitória do Republicano Herbert Hoover – retratando em O Homem Que Ri uma monarquia que persegue opositores e oprime as massas. A punição que James II inflige ao Lorde Clancharlie é motivada por este ter se negado a beijar sua mão. Fica evidente que, além de implacável, James II tem traços sádicos em sua personalidade. Não só condena o nobre que o “traiu”, como também seu filho Gwynplaine (em sua fase infantil, interpretado por Julius Molnar). E faz questão de contar isso a Clancharlie antes de ordenar sua execução, com o único objetivo de torturá-lo.
Naquilo que ajuda a definir um filme expressionista, O Homem Que Ri funciona praticamente como um manual para estudantes de Cinema: contraste extremo entre luz e sombra, personagens sintetizando emoções humanas, direção de arte conceitual em detrimento do realismo, fascínio pelo Mal e busca pelo Bem. Há uma ênfase na perspectiva individual de cada personagem, tornando claros tanto seus anseios como o inevitável conflito entre eles.
O filme de Leni não almeja ser um grande mistério, inclusive revelando porções generosas de sua história – muitas desnecessariamente – nos textos que são exibidos antes e durante as cenas. A trilha sonora, inserida após o filme já ter sido concluído, acerta quando cria temas para personagens ou ideias, mas peca ao repetir determinados trechos à exaustão, esvaziando-os do sentido original e virando praticamente cômicos. Este mesmo problema pode ser visto no clássico Psicose, que usa o tema do icônico assassinato no chuveiro mais de dez vezes durante o longa.
Muito das atuações em O Homem Que Ri só precisa do medo para funcionar perfeitamente em um filme de terror. Num universo interno apático e caricato, as interpretações efusivas dos atores soam coerentes em lugar de exageradas. Não apenas Conrad Veidt (o intérprete de Gwynplaine adulto) e Mary Philbin (acima, interpretando Dea, a moça cega que se apaixona por Gwynplaine), mas principalmente Brandon Hurst, que dá a Barkilphedro um aspecto ao mesmo tempo odioso e ameaçador.
Nesta Inglaterra corrupta e opressora, é tão fácil ter medo de figuras caricatas quanto é torcer pelo final feliz do casal de desajustados. A descrença na Humanidade é tão grande que o herói do filme é um cachorro chamado Homo. O grande mérito de O Homem Que Ri é construir uma realidade alternativa absurda que ao mesmo tempo é crível dentro das suas regras internas (personagens unidimensionais, anseios simplistas, protagonistas nobilíssimos e antagonistas vis) e encontra eco no mundo do espectador, funcionando como uma crítica social contra a ridicularização dos oprimidos e a ganância dos ricos. Uma cega amar uma aberração é – mais uma vez – simbólico.
O Homem Que Ri não é um filme de terror e nem por isso deixa de assustar. Não apenas visualmente, mas principalmente por abordar de forma extrema um mundo bastante real. Ao abordar a natureza humana de forma tão literal, com um protagonista sem nenhum motivo para sorrir obrigado a sorrir para sempre, faz pensar se todos não somos um pouco Gwynplaine, engolindo sapos e sorrindo para encarar as injustiças da vida. Essa perspectiva assombra mais do que qualquer monstro.
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