Antes do início da projeção de “O Insulto”, há um aviso estatal, informando ao público que as visões expressas no filme são compartilhadas apenas entre os responsáveis pela obra, não representando os ideais do governo libanês. Cria-se, então, a expectativa de um filme denso, impactante e polêmico. É curioso, porém, que tal peso dependa muito do ponto de vista do espectador. Certamente, para quem vive em países cujo conflito entre cristianismo e islamismo é algo constante, “O Insulto” é potente. Para nós, brasileiros, que vemos tudo com certa distância, apenas através da mídia, o filme pode soar inocente, até superficial. Há de se compreender, porém, que o peso não depende exclusivamente da palavra (no caso, do insulto), mas sim do que ele representa. “O Insulto” traz o choque de culturas, o preconceito enraizado, legitimado pelo Estado e corroborado pela população.
Na trama, Tony Hanna (Adel Karam) entra em uma disputa judicial com o encanador Yasser Salameh (Kamel El Basha) após um bate-boca que termina com uma agressão. O diretor Ziad Doueiri cria um clima de controle estatal em sua narrativa desde o princípio. A escolha de abrir o filme com um plano do presidente discursando, por exemplo, não só deixa claro o ambiente de preconceito com os não-cristãos como, ao mesmo tempo, torna o presidente uma figura desumana, mítica, por mostrá-lo primariamente de costas.
Detalhes nos ambientes também contribuem para essa ideia de invasão por parte do presidente. A casa de Tony traz um quadro do presidente na parede do quarto, algo que incomoda a esposa do protagonista – que inclusive verbaliza o simbolismo da cena ao dizer que é como se eles morassem com o presidente. Já na oficina onde trabalha, flagramos o personagem ouvindo os discursos do governante, por um rádio ou televisão. Além da opressão Estatal, o clima de conflito iminente também se faz presente na obra. Em algumas cenas, Doueiri faz uso de uma profundidade de campo grande, a fim de permitir que o espectador perceba, no fundo do plano, um homem andando com uma metralhadora pelas ruas.
Tony, logo, não demonstra receio diante do cenário, já que é parte dele. Desde sua primeira aparição, o personagem endossa o discurso de seu presidente, o que o torna um extremista. Já quando há o conflito com Yasser, há uma escala na narrativa. O que era uma briga de bairro torna-se, aos poucos, uma guerra judicial com engajamento político. Nisso, é interessante notar como elementos externos ao julgamento costumam interferir e até impedir a continuidade da sessão judicial, como quando uma briga na audiência faz com que os juízes encerrem a sessão.
Nos julgamentos, o jogo de câmera de Doueiri é elogiável. Nas primeiras sessões, o diretor faz uso de planos médios, mantendo certa distância de Tony e Yasser. Conforme o tempo passa e a situação fica mais séria, a câmera não só se aproxima, como leves movimentos podem ser percebidos, de forma que a câmera circula e cerca o protagonista, mostrando como ele está sendo consumido por uma guerra ideológica milenar.
É normal, inclusive, que o conflito judicial se desprenda da rivalidade entre a dupla principal e aos poucos torne-se quase um embate ideológico que mobiliza todo o país. Tony e Yasser acabam sendo apenas um conduíte para que membros daquela sociedade exprimam seus preconceitos, mágoas e feridas. E é aí que “O Insulto” revela a melancolia de sua narrativa: a batalha nunca foi entre Tony e Yasser. A dupla apenas herdou um legado de ódio e extremismo milenar, que aos poucos dá as caras, enquanto percebemos que os diálogos dos advogados partem da argumentação jurídica para defender seus clientes para a argumentação ideológica. É o acorrentamento ao passado que faz com que, a cada oportunidade, a disputa ideológica tome o lugar de protagonismo daquele grupo social.