Há uma cena em “Os Bons Companheiros” (1990) na qual Karen (Lorraine Bracco), esposa do protagonista Henry (Ray Liotta), liga para seu namorado chorando, pois acabou de ser agredida por um vizinho. A reação imediata de Henry é ir até o lugar, perguntar o que houve e, em seguida, atacar com coronhadas o agressor. Após o ataque, Henry deixa nas mãos de Karen a arma utilizada e pede para que ela a guarde em segurança. Karen, então, segura com carinho o revolver, enquanto afirma que, em seu lugar, a maioria das outras mulheres abandonariam o namorado violento naquele exato momento. Não é o que acontece com Karen. As duas cenas seguintes são, respectivamente, o casamento de Henry e Karen e uma briga entre Karen e sua mãe, na qual a mulher defende seu marido enquanto sua mãe critica o gângster por seu estilo de vida.
Não é preciso dizer que “O Irlandês” não é uma continuação de “Os Bons Companheiros”, mas o novo filme de Martin Scorsese apresenta, de certa forma, uma visão diferente para o típico personagem scorsesiano do gângster que balanceia a vida pessoal e a do crime. Em “O Irlandês”, há uma cena em que Frank Sheeran (Robert De Niro) chega em casa e descobre que sua filha pequena, Peggy, foi agredida pelo dono de uma mercearia. A reação imediata é pegar sua filha pelo braço e arrastá-la até a mercearia. Na frente da criança, Frank espanca o sujeito, traumatizando instantaneamente a menina diante do horror da cena por ela vista. A comédia da cena do longa de 1990 é substituída pelo drama no de 2019.
Martin Scorsese está, então, revisitando e ressignificando seu próprio cinema. Está, de alguma forma, revelando sua culpa – muito típica de seu cinema e de sua visão cristã de mundo, vale lembrar – diante de anos “glamourizando” a violência do mundo da máfia. O diretor, hoje com 76 anos, nos dá um novo olhar para uma jornada já tão explorada ao longo de sua carreira, que foi uma das que mais trabalhou a relação da sociedade estadunidense com a violência durante a busca pelo sonho americano. “O Irlandês” traz, portanto, um novo olhar para um mundo cinematográfico que poucos (ou ninguém) conhecem como Scorsese.
“O Irlandês” acompanha a trajetória de Frank, um veterano da segunda guerra que entra no mundo da máfia chefiado por figurões como Russell (Joe Pesci, que junto de Liotta e De Niro também fez “Os Bons Companheiros”) e Jimmy Hoffa (Al Pacino). Sheeran, por ser um sujeito 100% dedicado aos serviços a ele designados, cresce rapidamente no meio e se torna figura central no mundo do crime dos anos 60 e 70 – bem como Scorsese, no mesmo período, se tornou um dos expoentes da Nova Hollywood. É claro que essa escolha tem um preço, que é sua desumanização e o lento afastamento de sua família, que observa de fora da bolha da máfia como esse mundo de Frank perpetua a violência na sociedade – algo pontuado pelos inúmeros momentos em que os atos de Frank repercutem na imprensa.
Essa relação entre família e máfia não é desenvolvida diretamente (o filme foca muito mais no mundo do crime), mas é basilar para compreendermos o peso das escolhas de Frank. Se, em “Os Bons Companheiros”, durante o casamento de Henry, Karen é presenteada com envelopes de dinheiro e recebida com um afetivo “bem-vinda à família”, a esposa e as filhas de Sheeran parecem ter certo medo da faceta criminosa do chefe da família. Não à toa, Scorsese utiliza o batizado das filhas do personagem principal como marcação da passagem de tempo por boa parte dos 210 minutos da obra. É, basicamente, o único momento em que Frank está presente como figura paterna, e, até mesmo nesses momentos, a vida do crime “invade” a pessoal – boa parte dos amigos criminosos são padrinhos de suas filhas.
Porém, como mostram os filmes de máfia anteriores de Scorsese, o mundo do crime sempre leva a fins violentos. Não é novidade na filmografia do lendário cineasta filmes que terminam com amigos cortando laços e matando uns aos outros. Parece ser um fim inevitável para indivíduos que vivem à margem da lei em uma sociedade que é essencialmente brutal, algo que o próprio Scorsese explora brilhantemente desde seu primeiro clássico, “Caminhos Perigosos”, de 1973. Nesse ponto, são fundamentais os muitos close-ups e planos fechados que dão destaque aos rostos assustados das filhas de Sheeran diante do noticiário, enquanto o personagem apresenta enorme dificuldade para esconder sua ligação direta com os crimes vistos na televisão.
E, por falar em “Caminhos Perigosos”, esse filme mostra, de certa forma, um começo do estudo de Scorsese sobre o mundo do crime. Assim, é inevitável pensar “O Irlandês” como uma conclusão e um epitáfio para essa análise, mas apresentando um olhar diferenciado. Aqui, como fizera antes, o cineasta passa por toda a trajetória de seu protagonista no mundo da máfia, mas dá ênfase aos dias finais dos personagens nesse universo. Não por acaso, “O Irlandês” é o mais melancólico exemplar de filme de máfia na carreira de Scorsese, justamente por explorar a solidão, a melancolia e as cinzas deixadas por uma vida marcada pela violência e pela morte. Agora, o olhar não é do jovem encantado com as conquistas, mas sim do idoso que olha para trás e concebe o tamanho do estrago causado. Enquanto a obra de 1973 traz o olhar do jovem para uma narrativa focada nos jovens, o de 2019 traz o olhar do idoso para uma narrativa calcada na terceira idade.
Mestre da linguagem cinematográfica como é, Scorsese também não deixa de lado o simbolismo das cores para ilustrar o que seus personagens parecem incapazes de dizer. Toda a melancolia e a solidão de Frank ao fim de sua vida são retratados, imageticamente, de forma impressionante. A cena após o momento mais triste do filme, por exemplo, nos traz o protagonista vestindo uma camisa azul, que é também a cor do telefone utilizado por Sheeran no diálogo mais denso de “O Irlandês”. Torna-se difícil, então, não relacionar o estado emocional de Frank com o do diretor, que parece, a cada cena na qual condena os atos mafiosos, expurgar seus próprios demônios.
Nesse sentido, também é difícil não relacionar vários acontecimentos menores do filme com o ofício do próprio diretor. Na cena na qual Frank espalha suas armas em uma cama antes de escolher quais utilizará para um crime, é inevitável pensar em Martin Scorsese selecionando lentes para uma filmagem. Até porque, em inglês, tanto “atirar” quanto “filmar” são traduzidos por “shoot” – relação metalinguística que, inclusive, também foi usada por Kubrick em “Nascido Para Matar”, na cena em que uma personagem pede que “atirem” nela justamente enquanto o falecido cineasta a filma agonizando, nos chãos, diante da câmera. Essa relação, que é sutil e até imperceptível para muitos em alguns momentos, aproxima bastante o diretor e o personagem.
Sobram olhares cansados e desamparados no semblante de De Niro. Se “Os Bons Companheiros” termina com Henry tranquilo, vivendo uma boa vida anônima com sua família, “O Irlandês” dá o outro lado: Frank Sheeran dedicou sua vida a algo que, com o tempo, acabou. Investiu metade de sua trajetória em um universo que foi vítima da própria lógica interna, que estimula a brutalidade e a autossabotagem, e também do tempo, que tratou de desmantelar os grupos de máfia. Resta, então, aguardar pelo fim, na dúvida se tudo aquilo valeu a pena, já que, no fim da caminhada, a única coisa que o personagem de fato construiu parece ter sido vítima das mudanças do mundo, do tempo.
Bem como Martin Scorsese, o irlandês que dá título ao filme se tornou um museu vivo, o baluarte de um mundo que ficou para trás – as tantas transformações no cinema e o fim do mundo da máfia conversam diretamente no longa – e que lentamente é apagado da memória americana. Esse mundo, em “O Irlandês”, é desconstruído até o último tijolo, e Scorsese aos poucos abre mão do humor, da câmera agitada e dos planos quentes, e nos deixa diante de uma mise-en-scène propositalmente fria e inerte. É como se Frank Sheeran fosse perseguido por suas memórias e mal pudesse conceber o passar do tempo e tudo que estava perpassando sua vida ao longo dessa jornada pelo poder. Saem as execuções de outrora, filmadas com tesão, e entram assassinatos frios, muitas vezes filmados em um só plano.
Outra comparação inevitável é com “A Mula”, de Clint Eastwood. Poucos meses antes de “O Irlandês”, Clint também utilizou um filme para refletir sobre toda a sua trajetória pessoal e profissional. Ambos os longas funcionam dentro de suas lógicas narrativas internas, mas também cedem material suficiente para as enxergarmos como exercícios de auto-análise de seus autores. “O Irlandês”, então, se observado sob essa mesma perspectiva, apresenta-se como uma forma de Scorsese trazer um olhar mais maduro e experiente para a jornada da ascensão na máfia, tão trabalhada em sua cinematografia.
Chegamos, então, à conclusão de “O Irlandês”. Frank Sheeran se tornou um ermitão, um indivíduo perdido no tempo. Foi crucial para a construção de um mundo que sucumbiu diante do tempo e, para tornar mais densa essa transformação, também foi parte desse fim – algo que o perseguirá por toda sua vida, como o último ato inteiro deixa claro. Bem como Scorsese, um dos pilares da Nova Hollywood, que se vê distante do cinema comercial da década atual – como não lembrar de suas recentes críticas ao cinema da Marvel Studios? – e escolhe, agora, refletir sobre sua própria carreira.
Diante desse cenário de isolamento, refletir e ressignificar seu próprio cinema, como as mencionadas cenas das agressões, é um exercício de desabafo e expurgo de culpa. O interessante, porém, é que Scorsese jamais julga ou condena diretamente seu protagonista, mesmo que o filme aponte caminhos perigosos resultantes de suas escolhas. Scorsese entende que, assim como o que fez no passado – o cineasta é um dos pilares no estudo da violência da sociedade estadunidense –, o que Frank Sheeran fez foi produto de um tempo que passou. Ao diretor e ao personagem, a porta entreaberta para o diálogo, com o mundo e com o cinema.