“O Nome da Morte”, de Henrique Goldman, se filia a uma longa tradição do cinema policial brasileiro, de filmes protagonizados por personagens marginais, foras da lei que têm suas trajetórias dramáticas, frequentemente trágicas, acompanhadas com proximidade e algum grau de empatia. É possível remontar, por exemplo, aos anos 1950 e a “Amei um Bicheiro” (1952), de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, ou à década seguinte e a “Cidade Ameaçada” (1960) e “Assalto ao Trem Pagador” (1962), ambos de Roberto Farias. Todos eles em alguma medida influenciados pelo noir americano, gênero de tantos homens e mulheres “malditos”, condenados ao fracasso numa sociedade cruel.
No caso do filme dirigido por Goldman, no entanto, a proximidade narrativa em relação a Júlio Santana (Marco Pigossi), pistoleiro responsável pela morte de quase 500 pessoas, não produz exatamente empatia. Mesmo seguindo o personagem a partir de uma juventude de inocência quase total e ao longo de sua transformação em assassino implacável, Goldman e o co-roteirista George Moura sempre mantêm um olhar incomodado para a história que contam, algo refletido na atmosfera de estranhamento em que mergulham “O Nome da Morte” e no tratamento grotesco que dão ao universo de Júlio. Está-se aqui, portanto, distante da explicação da vida criminosa por uma trajetória de abandono e injustiça social, como nos dois filmes de Farias, ou do reconhecimento da justeza do embate de um bandido violento contra policiais ainda mais brutais (e corruptos), como em “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977), de Hector Babenco.
A opção pela representação de personagens fora da lei (mas que se confundem com ela, já que também são policiais) como figuras abjetas se explicita em Cícero (André Mattos), tio do protagonista. Ao mesmo tempo ameaçador e ridículo, o sujeito atua em “O Nome da Morte” como uma espécie de demônio, que seduz Júlio para um ofício que ele exerce há algum tempo sem qualquer remorso – pelo contrário até, já que os assassinatos sustentam uma vida de prazeres mundanos à qual Cícero é bastante apegado. Mas o ridículo kitsch de novos ricos que extraem sua fortuna de crimes hediondos alcança também o protagonista e sua esposa, Maria (Fabíula Nascimento). No ápice da carreira de Júlio, ela surge frequentando uma loja da rede Havan, conhecida pelo extremo mau-gosto de sua fachada – enquadrada por Goldman num contra-plongée que ressalta ainda mais essa característica –, bem como por uma história de problemas na justiça e, em tempos mais recentes, pela adesão de seu dono a discursos políticos agressivos e retrógrados nas redes sociais. Pouco depois, os dois personagens surgem convertidos ao cristianismo neopentecostal, frequentando um culto num espaço tão kitsch quanto.
Essa insinuação de uma conexão (atravessada por forte componente estético) entre crime, empresariado e igrejas evangélicas no Brasil contemporâneo é um dos poucos flertes do filme com a crítica política, ao lado de rápidas referências às execuções de uma indígena e do líder de um movimento camponês. O que é uma pena. O verdadeiro Júlio Santana tem uma trajetória marcada pelo contato mais direto com a violência proveniente do mundo político, já que participou da repressão à guerrilha do Araguaia no início da década de 1970, mas “O Nome da Morte” segue um curioso caminho de desinteresse por qualquer contextualização histórica (apesar de haver passagem de tempo ao longo do filme, pontuada pelo número de vítimas do protagonista, a trama parece sempre ambientada num mesmo presente).
Preocupados primordialmente com as angústias e consequências dos atos de Júlio, diretor e roteirista aproximam “O Nome da Morte” das jornadas de ascensão e queda típicas do gênero, de “Scarface – A Vergonha de Uma Nação” (1932), de Howard Hawks, a “Os Bons Companheiros” (1990), de Martin Scorsese – ainda que a história que contam não se encerre exatamente num momento de decadência do pistoleiro. Esse último filme, aliás, que também acompanha seu personagem central desde uma adolescência ingênua e deslumbrada pelas facilidades materiais decorrentes do crime, poderia ser tomado como uma inspiração importante para Goldman e Moura. Inclusive na figura de Cícero, cujo encontro entre comicidade e violência (a cena em que se exercita ao som de “Conga conga conga” é exemplar nesse sentido) faz lembrar um pouco o Tommy DeVito (Joe Pesci) de “Os Bons Companheiros”.
No entanto, o tom de “O Nome da Morte” é claramente outro. Ao invés do ritmo frenético e da ironia de Scorsese, tem-se aqui o peso trágico de uma história de eternos retornos, cuja inevitabilidade parece advir, no fim das contas, de uma espécie de pacto mefistofélico feito pelo protagonista. Em razão disso, o demoníaco Cícero guarda semelhanças consideráveis com o Whitey Bulger (Johnny Depp) de “Aliança do Crime” (2015), de Scott Cooper, filme também mergulhado num universo criminoso desprovido de qualquer dimensão humorística e controlado por esse monstro que afeta de maneira irreversível quem se aproxima dele.