É grande a tentação de interpretar “O Oficial e o Espião”, de Roman Polanski, à luz de alguns fatos emblemáticos da vida do diretor. O filme que reconta aquela que talvez seja a mais célebre história de injustiça do mundo moderno, o affaire Dreyfus, dirigido por um homem acusado de crimes ainda mais terríveis que os imputados a Alfred Dreyfus e que se julga perseguido: vítima, no passado, de uma aliança escusa entre judiciário e mídia – sobre isso, ver o bom documentário “Roman Polanski: Wanted and Desired” (2008), de Marina Zenovich – e, no presente, de um linchamento público. Mas Polanski consegue, com elegância, evitar transformar “O Oficial e o Espião” em mero instrumento de resposta a acusações extra-fílmicas.
Ele faz isso por meio de um rigor absoluto. “O Oficial e o Espião” é meticuloso na reconstituição de cada etapa do caso, a ponto de se tornar frio. Dá atenção aos muitos procedimentos, militares e civis, constituintes de um imbróglio jurídico que durou alguns anos. Erige, assim, uma espécie de descrição densa do funcionamento do Estado francês na virada do século XIX para o XX, aceitando de bom grado o risco de soar repetitivo e enfadonho. O resultado, no entanto, é uma sensação de compromisso absoluto com uma história que ecoaria nos momentos mais horripilantes das décadas seguintes na Europa.
Consequentemente, “O Oficial e o Espião” escapa de armadilhas sentimentais, presentes numa narrativa prenhe de situações que lembram, por exemplo, a dos protagonistas de “Ponte dos Espiões” (2015), belo filme de Steven Spielberg em que um americano típico e um espião soviético constroem uma relação de mútua admiração no auge da Guerra Fria. Em “O Oficial e o Espião”, a injustiça contra Dreyfus (Louis Garrel) é contada pelo ponto de vista de Georges Picquart (Jean Dujardin), coronel do exército francês que investigou e descobriu essa farsa antissemita, mas que era, ele próprio, pouco afeito aos judeus. Mais uma vez, dois homens a princípio opostos, que se descobrem portadores de valores comuns. O tom, no entanto, é diverso do de “Ponte dos Espiões”: na cena final, Dreyfus, enfim livre, vai até Picquart, agora Ministro da Guerra, não para um encontro redentor, mas para cobrar uma promoção na carreira militar. Não há catarse.
Nesse sentido, “O Oficial e o Espião” lembra bastante “O Pianista” (2002), em que Polanski evita momentos de exacerbação emocional mesmo numa história extrema. Aqui, curiosamente, o contraponto é outro filme de Spielberg, “A Lista de Schindler” (1993), drama pesado e celebrado sobre o shoah, mas que se entrega, no epílogo, a artimanhas chorosas, opção que gerou críticas bastante duras à época de seu lançamento. Polanski prefere a austeridade. Como a cinebiografia do pianista polonês Wladyslaw Szpilman também guarda pontos de contato com a vida do diretor, ele próprio um sobrevivente do shoah, esse caminho produz efeito de distanciamento semelhante ao de “O Oficial e o Espião”. Trata-se de um esforço para proteger os filmes de uma contaminação excessiva pelas memórias e opiniões de quem os realizou. Elas estão presentes, claro, e tanto “O Pianista” quanto “O Oficial e o Espião” podem ser vistos como comentários pessoais sobre momentos específicos da trajetória de Polanski. Mas nunca a ponto de ofuscar seu interesse pelas histórias de Szpilman, Picquart e Dreyfus.
Em “O Oficial e o Espião”, essa preferência pelo olhar rigoroso para o passado ainda se mostra bastante coerente com o protagonismo militar. Para Picquart, Dreyfus e todos aqueles que incriminaram esse último injustamente, noções como ordem, hierarquia e ritualística têm muita importância. O filme abre com a cena da degradação pública de Dreyfus. Nela, mesmo humilhado diante de seus colegas de farda e de populares, o militar judeu continua obediente aos ritos, marchando enquanto clama pela própria inocência. Polanski é bastante crítico a um uso hipócrita, autoritário e corporativista dessas noções, responsável pela própria ocorrência do affaire Dreyfus. Mas não as nega em si. Afinal, elas organizam a visão de mundo dos homens bons de “O Oficial e o Espião” (Picquart e Dreyfus) e é com base nelas que eles agem positivamente.