Plano Aberto

O Outro Lado do Vento

“Fazíamos uma cena com um ônibus. A certa altura, o câmera não conseguia retirar do quadro um sinal vermelho com uma cruz. Alguém disse: “Vamos tirar aquele sinal, não se encaixa na história”. Mas Orson respondeu: “Não, deixem-no aí. Pauline Kael escreverá parágrafos inteiros sobre o simbolismo dessa cruz vermelha”.

O relato é de Susan Strasberg, que trabalhou com Orson Welles nos anos 70, durante as filmagens de “O Outro Lado do Vento”, filme de produção extremamente problemática que só chegou a ver a luz do projetor mais de trinta anos após a morte de Welles, em 2018. O deboche de Welles para Kael, uma das mais renomadas críticas da história dos Estados Unidos, expõe uma das ideias que o lendário cineasta desenvolveu em seu último filme: “O Outro Lado do Vento” é praticamente a destruição da forma do filme. Muitas convenções e ideias pré-concebidas sobre arte são não só postas a prova, mas também rejeitadas e esmigalhadas por Welles.

A trama traz uma brincadeira metalinguística em sua base. Acompanhamos o último dia de vida do diretor Jake Hannaford (John Huston), que está prestes a lançar seu novo filme “O Outro Lado do Vento”. Welles, porém, alterna entre a rotina de Hannaford e cenas do próprio filme. Há, inicialmente, algumas diferenças entre as cenas do mundo de Hannaford e as do mundo de sua obra. Quando acompanha o cineasta, a narrativa adere a um falso tom documental, expondo câmeras e microfones a todo momento, trazendo imagens e depoimentos desconexos e, principalmente, movimentando a câmera e decupando as cenas de forma a que o espectador fique confuso quanto à ordem dos acontecimentos, incapaz até mesmo de conceber a mise-en-scène de algumas cenas. Já as passagens do filme (dentro do filme) são mais serenas, firmes. Há uma maior coesão estética. Há harmonia.

Essa diferenciação remete a uma ideia muito bem trabalhada em um dos grandes clássicos de Welles, “Verdades e Mentiras”, que desconstrói a ideia de que a verdade é a matéria prima do cinema – na verdade, o cinema trabalha pela mentira para, então, chegar à verdade. Isso é visível também em “O Outro Lado do Vento”, já que, mesmo que o filme de Hannaford tenha os elementos cinematográficos utilizados para que possamos identificá-lo como um filme de fato, as cenas do diretor e sua equipe trabalhando também são transformadas em uma farsa a partir do momento em que Welles opta por montá-las de forma desconexa e expor os microfones. Aos poucos, notamos que a única coesão reside justamente no filme de Hannaford, e não em seus depoimentos e conversas. Welles, magistralmente, recria a ideia de que a verdade (no caso, a lógica) só existe por meio da mentira.

Essa confusão, em dado momento, nos faz ter a sensação de que assistimos ao filme a partir da perspectiva do próprio Welles, mas não como um filme, e sim como ideias. “O Outro Lado do Vento” nos insere na própria mente de seu criador, nos fazendo experimentar a destruição criativa que desafia a estética do cinema. Escolhas como filmar em preto e branco ou colorido são utilizadas sem nenhuma lógica, justamente para romper qualquer possibilidade de análise por signos – como poderia ser feito a partir do sinal vermelho com a cruz, que Welles insistiu para que continuasse no set de filmagem.

Iconoclasta e subversivo, o Orson Welles do período da criação de “O Outro Lado do Vento” era um sujeito extremamente crítico à arte de seu tempo e à forma como ela era absorvida pela crítica. É de se esperar, então, que “O Outro Lado do Vento” seja um filme tão incisivo quando trabalha com esses aspectos. O filme dentro do filme, por exemplo, aposta em elementos muito bem quistos pela nova Hollywood, como a nudez e a violência, mas os trata de forma genérica, como se tivessem sido pasteurizados pela indústria. Já a quebra da lógica no uso da fotografia em preto e branco surge como um desafio aos que tentam encontrar significação em elementos visuais. Curiosamente, o filme inacabado de Orson Welles é lançado em 2018, mas por ser tão combativo e por rejeitar tanto os caminhos narrativos do cinema, se torna tão preciso quanto seria se lançado há quarenta anos. “O Outro Lado do Vento” é, de certa forma, o anti-cinema.

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