Plano Aberto

O Pão Nosso de Cada Dia (1930)

1. A inocência e os valores do campo

Em O Pão Nosso de Cada Dia, seus dois protagonistas são os perfeitos arquétipos de cada meio em que vivem, representantes da dicotomia entre cidade e campo. Lem é o menino do campo que vive com os pais e se impressiona com a metrópole e Kate é a menina autônoma da cidade grande que sonha com uma vida bucólica. Entre as duas vontades antagônicas, o ponto de interseção entre ambos será a solidão. Por sua vez, este encontro permitirá um verdadeiro choque de percepção entre as duas imaginações utópicas do que é a cidade e o campo. 

Já na primeira cena do filme, o diretor F. W. Murnau mostra tudo que precisamos saber sobre Lem e o que ele enfrentará na cidade. Em um trem, o rapaz está com a cabeça colada na janela, com olhos brilhantes para o extraplano, sonhando acordado, até que é interrompido pelo cobrador e se enrola todo para achar o bilhete no meio de seus pertences. Sem cortar o plano, Murnau vira a câmera para uma menina (que não é Kate), no lado oposto da mesma fileira. Sua posição não poderia ser diferente: seus olhos estão voltados tediosamente para cima (como se não tivesse mais o que olhar em uma viagem que faz tantas vezes), além de saber perfeitamente onde seu bilhete está. Assim, em um mesmo plano sem cortes, Murnau já estabelece uma dicotomia entre a cidade e o campo.

No corte seguinte, a menina percebe a presença de Lem ao seu lado quando ele está contando dinheiro e passa a reparar nele, também se maquiando para chamar sua atenção (com Murnau abrindo para um plano geral que permite a visão dos dois). Diferente do garoto, inocente por tirar um maço de dinheiro no meio do trem, seu olhar já contém uma certa ‘malícia’ da cidade, uma visão oportunista. Assim como a garota que coloca seus olhos sobre ele, o espectador também passa a observar as ações de Lem. Em uma sequência bem humorada, Murnau vai mostrando como ele é um bom menino do campo que nunca foi para longe de seus pais e um plano-detalhe enquadra uma carta de sua mãe que avisa das roupas dobradas por ela na mala e pede para que ele não fale com estranhos. Obviamente, o próximo plano que Murnau mostra é a primeira tentativa de comunicação desta garota, que pergunta a ele se irá comer no trem, o que é respondido com uma negativa quando Lem revela um sanduíche caseiro enrolado pela mãe. 

Agora que já se sabe tudo sobre Lem, antes de chegar até a cidade e apresentar Kate, Murnau também apresenta seu terceiro protagonista, o pai de Lem. Também basta uma sequência para dizer tudo sobre o personagem. Primeiro, vemos ele se sentando na mesa fazendo cálculos, enquanto a sua mulher ao lado faz pão, enquanto uma montagem paralela intercala uma cena localizada na bolsa de valores em que os valores dispostos no quadro rapidamente vão sendo apagados e substituídos por um novo, em um ritmo impossível de acompanhar, de modo que mais uma vez Murnau estabelece em imagens a diferença entre campo e cidade. Os cálculos do pai rapidamente se interrompem quando ele percebe que a irmã menor de Lem está brincando com um pedaço de trigo (que é o cultivo da família), indo dar uma grande bronca nela, que termina em choro. Depois disso, todos se sentam à mesa para comer e, na posição de na cabeceira, ele passa a rezar “o pão nosso de cada dai”. Portanto, já se sabe os valores que regem o personagem: um chefe patriarcal pautado na base da rígida disciplina e dos valores religiosos. 

 

2. O ritmo da cidade e sua solidão

Com uma transição que saí do pai de Lem cortando o pão manualmente e chega a uma máquina que faz pão automaticamente, Kate e a cafeteria em que ela trabalha são apresentados, em mais uma dicotomia entre campo e cidade. Assim como a garota da primeira cena, a protagonista é mais uma menina da cidade que direciona seu olhar para Lem e o fato de Murnau ter usado duas personagens diferentes, ao invés de botar Kate desde o início, cria essa ideia de que a cidade está repleta de mulheres com os mesmos sonhos de acharem um marido. Fazendo o mesmo movimento de observá-lo sem que ele perceba, Kate vê uma atitude quase alienígena que ninguém da cidade pararia para fazer no meio das refeições corridas, que é quando Lem reza no meio da cafeteria, uma pureza que encanta ela. 

Paralelamente a isso, Murnau vai mostrando a rotina exaustiva de garçonete de Kate, ao mesmo tempo em que o dinamismo da vida da cidade é mostrado, com a utilização de planos espacialmente lotados de figurantes (tanto horizontalmente quanto na profundidade de campo) e muita movimentação. Tudo isso leva Kate a ir respirar um pouco em um corredor vazio da cafeteria, se perdendo na visão de um quadro bucólico ali pendurado, enquanto um ventilador parece refrescá-la diante do sufocamento que ela sente, o que não apenas é provocado pela quantidade de tarefas que precisa fazer, mas também pelo trato diário com diversos homens imbecis e maliciosos.

Saindo do ambiente de trabalho para o caseiro, Murnau reforça pela cenografia do apartamento de Kate alguns dos seus sentimentos. O quarto, vazio, por si só já parece uma cela de prisão e possui apenas como decoração uma plantinha que está quase morta e uma gaiola com um passarinho preso, o que imediatamente identificam a personagem com a tristeza e o aprisionamento da personagem. Da janela, ela vê um outdoor que traz uma propaganda de férias no campo, ao mesmo tempo que esta visão também é cortada por um trem, símbolo do fluxo e do barulho da cidade. 

Similarmente a Kate, Murnau também já vinha mostrando as adversidades da cidade para Lem, quando ele não consegue acompanhar o intenso ritmo da bolsa de valores e perde a cotação mais alta do trigo que iria vender. Inclusive, Murnau também faz questão de mostrar a solidão do personagem quando começa um plano fixo nele, sozinho na calçada, e vira a câmera para uma multidão descendo da escada, seguindo o fluxo da cidade com largos passos, enquanto ele distraidamente anda em outro ritmo lendo seu jornal, distraído. Além disso, a montagem possui um papel psicológico importante, realizando um movimento muito invasivo, no qual a trajetória de Lem pela cidade é constantemente interrompida por cenas de seu pai no campo, como se o filme fizesse um movimento de retorno imagético para representar uma dependência emocional do personagem à suas responsabilidades, impedindo que ele viva plenamente a sua história de amor e fosse sendo puxado de volta.

É dentro deste contexto então que se passa a ver a aproximação calculada da personagem com Lem, que enxerga nele uma possibilidade de concretização dos sonhos, enquanto o mesmo encara o encontro como um acontecimento mágico que só as coincidências da cidade poderiam permitir. É curioso como ao mesmo tempo que Murnau é cínico diante dos movimentos de Kate no início, ele gradualmente também se permite acreditar no romance entre os dois, como se ela tivesse se apaixonado no processo, culminando na cena do desencontro entre os dois vira um encontro mágico. 

 

3. O campo e a desconstrução da utopia

Ao chegarem no campo, Murnau decupa uma das cenas mais lindas e líricas de sua filmografia, na qual os recém-casados correm livremente por sua imensidão, se integrando harmonicamente na natureza e se perdendo no meio dela. No entanto, após essa primeira parte que se passa na cidade e culmina na chegada ao campo, O Pão Nosso de Cada Dia rapidamente reconfigura sua narrativa e passa a destruir a ideia de utopia bucólica. No geral, o filme trabalha muito a ideia do campo associado ao trabalho e obrigações, que rompe com o que os dois protagonistas sonhadores almejavam, como dois jovens que queriam apenas viver uma história de amor e são chamados de volta para a realidade. Se na cidade ela fugia da vida de garçonete, no ambiente familiar do campo ela precisará reproduzir as funções de servidora de homens e ser uma dona de casa, o que desespera a personagem. Com isso, a cena inicial no campo vai se tornando rapidamente uma distante memória e é como se progressivamente os dois personagens começassem a ficar exauridos e exaustos, se distanciando e esquecendo o amor um pelo outro no processo.  

Para mostrar que o campo não é tão diferente da cidade, Murnau consegue estabelecer paralelismos visuais que mimetizam os desgastes sofridos por ela na cafeteria para o ambiente do campo, no qual no qual vai ficando nítido que, não importa o lugar que Kate (ou qualquer outra mulher) vá, ela irá continuar sofrendo e sendo assediada.  Afinal, acima de tudo, é preciso dizer que a história é primordialmente do ponto de vista feminino — é sobre a “Garota da Cidade”, como diz o título original do filme — e possui características modernas no que tange a caracterização de uma personagem feminina forte, que, além de expor problemas machistas e patriarcais, luta contra eles. 

Por exemplo, o momento na cafeteria quando ela sobe em um banco para pegar um item é igual a cena em que ela precisa subir na carroça. Nas duas cenas, suas pernas ficam à mostra e Murnau evidencia o male gaze tanto dos clientes do café quanto dos trabalhadores da plantação, que lançam olhares maliciosos sobre ela. Já se na cafeteria ela parecia sufocada, será no campo que a protagonista se sentirá ainda mais claustrofóbica pelos homens que estão sempre ocupando o mesmo plano que ela. São muitos os planos em que Kate é segurada fisicamente ou é encurralada contra a parede por diferentes homens, além dos contraplanos dos trabalhadores que estão sempre olhando para ela como um pedaço de carne.

Apesar do tom progressivamente dramático e melancólico de O Pão Nosso de Cada Dia, que está muito mais para a tragédia do que para a comédia, a personagem de Kate cumpre um papel desestabilizador similar ao protagonista de Boudu Salvo das Águas (Jean Renoir) ou das personagens femininas das screwballs de Howard Hawks. Com a vivência e a independência da cidade, ela surge como essa mulher que irá confrontar frontalmente o patriarca da família de Lem e todos os valores inerentes a ele, fora que a sua própria presença enquanto mulher também passa a afetar a produtividade dos trabalhadores, portanto bagunçando tanto a estrutura familiar quanto a econômica do campo. Claro que ainda é um filme de 1930 e não há de se cometer leituras anacrônicas, não se tratando de um ‘feminismo’ em que a independência da mulher é plena e o ponto final da jornada é a ruptura com o universo masculino, então obviamente o fim ideal de O Pão Nosso de Cada Dia é contextualizado dentro da própria ideia romântica de casamento, de uma trajetória que visa revolucionar Lem, seu marido, fazendo o movimento de deixar de ser o menino obediente e submisso ao pai, para se tornar um homem que defende sua mulher e protege sua mulher. 

 

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