Em abril desse ano, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) publicou uma lista, compilada através de votos dos integrantes da instituição, elegendo os 100 melhores filmes do cinema fantástico brasileiro de todos os tempos. Na 24ª posição, uma produção que chamou a atenção de alguns: “O Pasteleiro”, de David Cardoso – que é, na verdade, um segmento da antologia em longa-metragem “Aqui, Tarados!”, co-dirigida por Ody Fraga e John Doo.
“Aqui, Tarados!”, por diversas razões, pode ser tido como um típico representante do tipo de cinema que vinha sendo produzido pela Boca do Lixo paulistana entre o final da década de 1970 e meados dos anos 1980. Para além de ter sido o berço de filmes fundamentais do chamado Cinema de Invenção ou Cinema Marginal, por onde circulavam figuras como Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach, a Boca era um centro prolífico para a produção e distribuição de fitas eróticas ou explícitas (frisar essa distinção é fundamental).
David Cardoso, Ody Fraga e John Doo são três figuras fundamentais para essa cinematografia da Boca, trabalhando recorrentemente juntos em filmes produzidos pela DaCar, produtora de Cardoso – que, sendo um dos principais astros do que é genericamente rotulado como a “pornochanchada” brasileira, invariavelmente atuava na maior parte deles. A parceria entre esses três nomes, que comumente se uniam em filmes-antologia nos quais cada capítulo era dirigido por um deles, pode ser conferida em longas como “Pornô!”, “A Noite das Taras” e, claro, “Aqui, Tarados!” – todos lançados no mesmo ano, 1981, para se ter uma noção do quão intenso era o ritmo da produção e da distribuição dos filmes da Boca do Lixo.
Sendo o episódio final de “Aqui, Tarados!”, “O Pasteleiro” é de longe o segmento mais interessante da produção. Os dois anteriores são bem básicos, primários, até: “A Tia de André”, dirigido por Doo, é a história da sedução de um adolescente, como indicado pelo título, por sua própria tia; “A Viúva do Dr. Vidal”, comandado por Fraga, mostra a esposa de um falecido figurão vingando-se de seus atos torpes ao chegar às vias de fato em frente ao caixão do marido com um segurança designado para prestar-lhe condolências. Fugindo dessas narrativas simplistas e mesmo clichês presentes em seus antecessores, “O Pasteleiro” é maior em basicamente tudo: duração (ocupa, sozinho, quase metade do filme inteiro), escopo, ambição e inventividade temática e estética.
O filmete tem a presença do trio responsável por “Aqui, Tarados!” em sua melhor forma: roteiro de Fraga, direção (e produção) de Cardoso e contando com Doo na tela, interpretando o titular pasteleiro. O personagem, a princípio um tipo ingênuo, simpático e um tanto quanto delicado, aborda uma trabalhadora sexual na noite e a leva para casa. Ali, ela descobre uma espécie de altar com fotos de diversas mulheres, e logo o pasteleiro a fotografa para adicionar mais uma imagem à coleção.
Com a dinâmica inicial sendo a da dominância feminina, com a mulher estabelecendo as condições de seu trabalho e submetendo o homem a estas, na medida em que o pasteleiro vai demonstrando sua gentileza e generosidade (inclusive financeira), a trabalhadora sexual vai gradualmente cedendo a seus caprichos até o momento em que o filme chega em sua virada: após desenhar uma série de linhas no corpo da mulher, o personagem de Doo prenuncia o início de um ato sexual, apenas para alcançar uma faca e avançar sobre a vítima, prostrada sobre a cama, que grita desesperadamente ante sua condenação inescapável.
É a partir daí que “O Pasteleiro” mostra-se digno de figurar em uma lista sobre cinema fantástico brasileiro; se não o faz pelo que comumente é imaginado pelo espectador no que é relativo à palavra “fantasia”, alcança esse posto pelo macabro, pelo gore, pelo improvável que chega ao fantástico através do desenrolar dos atos. Entoando um riso sinistro, o homem submete o cadáver ao ato da necrofilia; se regojiza de prazer enquanto domina um corpo onde o sangue já não pulsa. Através desse movimento (em verdade desde antes, quando pega a faca, escondida em uma gaveta do móvel ao lado da cama), o personagem de Doo inverte a dinâmica de dominação e submissão que até então permeara o episódio; agora é a mulher que é vassala de suas vontades, e não o contrário – ainda que, para isso, tenha precisado levar a situação a consequências trágicas.
O desdobramento para chegar ao fantástico (ou o grotesco) continua quando são retomadas as linhas anteriormente desenhadas no corpo da vítima. Essas linhas estão ali por um motivo, que não era, como a mulher expressara em sua suspeita inicial, o de um fetiche atrelado aos desenhos. Foram traçadas ali com a mesma função com que o seriam no corpo de um animal bovino: para dividir peças de carne.
É seguindo esse preceito que o algoz desmembra a vítima, com requintes de crueldade. Aqui, os truques cênicos e a maquiagem que as condições de produção que a Boca do Lixo podia oferecer dão o melhor de si, e atingem considerável êxito em suas modestas condições: o sangue é abundante, espalha-se pela cama e pelas vestes de John Doo, que, vitorioso, ergue a cabeça da trabalhadora sexual assassinada ostensivo como um guerreiro medieval ao fim de uma batalha. O corpo decapitado jaz inerte no leito, o pescoço esguichando ainda mais sangue. É uma cena digna de giallo italiano, talvez uma das coisas mais próximas de um giallo à brasileira a contar com o envolvimento de David Cardoso (para além de “Amadas e Violentadas” [1976], de Jean Garrett, onde Cardoso atua no papel principal).
O pasteleiro não traçaria, em sua vítima, linhas como as de peças de carne bovina se não fosse dar ao corpo o mesmo destino que daria a um boi. O filme conclui sua jornada de fantasia mórbida quando, após enfiar os membros da mulher em um moedor de carne, o pasteleiro coze esses pedaços e prepara, para si, uma porção de pastéis. Agora, o personagem já demonstra a maior calma do mundo, retornando àquele ar de serenidade e ingenuidade do início. Parece ter encontrado sua paz, regredido a seu estado natural após deixar seus piores impulsos chegarem à flor da pele durante a noite. Está em paz consigo mesmo, sendo simultaneamente um necrófilo, um serial killer e um canibal. Em menos de quarenta minutos, David Cardoso sintetiza material suficiente para preencher vários longas de horror.
Somado a isso, um epílogo: pastéis são servidos a clientes numa pastelaria; um destes, recostado no balcão, alega que, mesmo não sendo adepto aos salgados de rua, tem pelos pastéis dali a maior consideração, e pagaria por eles qualquer coisa.
Cardoso não precisa por em tela nada mais do que isso; não subestima a inteligência do espectador em fazer a conexão com o que fora mostrado imediatamente antes, não direciona sua câmera a um assassinato seguinte ou a qualquer outro signo visual autoevidente. Prefere finalizar seu filme simplesmente com a imagem mental perturbadora, instaurada na consciência do espectador, de pessoas obliquamente comendo pastéis de carne humana – e deliciando-se com isso.
“O Pasteleiro” termina desse modo perverso, digno dos atos de seu personagem principal, e consagra “Aqui, Tarados!” como um dos melhores filmes da produção erótica/explícita da Boca do Lixo – e o filmete existe em uma espécie de limiar entre as duas categorias, não sendo tão explícito, por exemplo, quanto expoentes mais hardcore do cinema da Boca, como “Fuk Fuk à Brasileira” de Jean Garrett, ou “Um Pistoleiro Chamado Papaco”, de Mário Vaz Filho, ambos de 1986. Analisando a cronologia da Boca do Lixo, é possível dizer, fazendo algumas generalizações, que a produção foi rumando de maneira significativa ao mais explícito na medida em que os anos 1980 foram avançando – ainda que, na contramão do que vinha sendo feito à época, Cardoso tenha, nesse mesmo 1986, produzido, dirigido e atuado em um filme de docuficção sobre a conscientização acerca de doenças sexualmente transmissíveis, o emblemático “Estou com AIDS”.
Um dos pontos altos da extensa e múltipla filmografia de David Cardoso e um de seus melhores trabalhos como diretor, “O Pasteleiro” (e “Aqui, Tarados!”, consequentemente) figura também entre os filmes essenciais da Boca do Lixo como um todo, ocupando um lugar mais do que justo na lista publicada em abril pela Abraccine. Que sua posição em tal listagem sirva como um estímulo para que mais espectadores se interessem pelo filme e, por conseguinte, no cinema de Cardoso. Ainda que inconstante, ele é capaz de nos proporcionar produções como essa.