Apesar de apresentar a mesma base shakespeareana, o novo “O Rei Leão” é, narrativamente, bem diferente da clássica animação da Disney de 1994. Vítima da perseguição ao realismo que tanto maltrata o cinema contemporâneo, o filme de Jon Favreau parece ver o desenho de 1994 como um storyboard, mas se esquece do principal: a força da imagem. O que cada olhar, curva e cor contam e que não necessariamente está escrito. O que as imagens mostram e que engrandece a história que marcou uma geração. Com a proposta de ser “realista” ao construir sua narrativa não com desenhos, mas com animações em computação gráfica que emulam com precisão a aparência e os movimentos dos animais, o novo “O Rei Leão” reconta a trama de Simba e sua busca por vingança contra seu tio, o terrível Scar, que deu um golpe para se tornar o rei.
O longa de 2019 até tenta disfarçar sua falta de novidades por meio de algumas adições. O roteiro parece mais preocupado em expor as contradições do sistema monárquico no qual os personagens vivem do que estava o de 1994, ao passo que o texto também dá maior profundidade à relação predatória existente entre os animais. Na animação infantil de 1994, porém, tais características não chegavam a ser um problema, já que a política era apenas um adereço menor dentro da tragédia dos leões. Aqui, por haver essa incessante e massacrante busca pelo “realismo”, o texto parece sempre buscar racionalizar questões fantásticas para melhor adequar a obra aos tempos atuais.
Visualmente, o filme até se esforça para não parecer uma reconstrução quadro a quadro no estilo “Psicose” de Gus Van Sant, mas a mudança é sutil demais. Um exemplo disso é quando Favreau filma o primeiro conflito entre Mufasa e Scar: na animação, acompanhamos o distanciamento do vilão de frente, enquanto no “live-action”, a câmera se posiciona atrás enquanto Scar se afasta da câmera. São escolhas que não possuem valor efetivo, pois existem apenas para que o filme possua uma defesa para as acusações de ser um remake “plano por plano”.
O problema é que, nessa reconstrução, o pior não é nem a falta de originalidade, mas a ausência de fantasia resultante da busca pelo realismo. Ironicamente, os momentos mais belos são justamente quando o filme não está preocupado com o realismo e brinca metaforicamente com a figura do vilão, como quando Scar projeta sua sombra sobre Simba, momento que denota imediatamente seu caráter cruel e oposto ao de seu irmão, Mufasa – além de brincar com a relação entre luz e sombra que é utilizada pelo próprio Mufasa para explicar a Simba até onde vão os domínios da família.
O preço que se paga por essa troca do fantástico pelo real é, dramaticamente, altíssimo. Se no desenho de 1994, uma tonalidade de verde é utilizada para sugerir o caráter vilanesco de Scar (a cor está tanto em seus olhos quanto na fumaça que aparece durante seu número musical), o longa metragem traz Scar apenas como um leão do National Geographic que tem sua vilania exposta única e exclusivamente pelas falas e atitudes, mas nunca acompanhadas pela imagem. Os olhares, gestos teatrais e até mesmo a forma imponente como ele se movimenta diante de seu sobrinho, personagem quem manipula, são totalmente lavados ou anulados em prol desse realismo que não se paga.
O drama, esvaziado, cede lugar a imagens documentais insípidas. Em vez de close-ups e planos detalhe nos olhares que expressam medo, rancor ou coragem, temos os muitos planos abertos que mostram leões… Existindo… Em ambientes selvagens… Desaparece qualquer resquício de personalidade ou traço que impute alguma alma às imagens. O novo “O Rei Leão” mais parece um conjunto de registros de um programa do Discovery Channel do que qualquer outra coisa. É, portanto, sintomático que os números musicais sejam praticamente opostos aos da animação original, que era cheia de nuances, bom humor e um caráter aventuresco. Aqui, os musicais mais parecem um exercício de redublagem em cima de imagens documentais de arquivo.
A fim de evocar a nostalgia, “O Rei Leão” até abraça algum viés fantástico na construção imagética em seu clímax. Desde o fogo que ilustra o fundo do plano até os movimentos de câmera mais bruscos, escolhas técnicas e estilísticas são um meio para que, quadro a quadro, o longa reverencie a animação que o inspirou. Acaba sendo, porém, não um sinal de personalidade, mas apenas um vão esforço para alcançar algum tipo de catarse pela memória.
Por quase toda sua metragem, o novo “Rei Leão” parece um exercício tecnológico e estético que afasta o que havia de melhor na história original: o drama, o peso da tragédia e as personalidades de cada personagem. É não só um desastre em termos de pretensão – afinal, fazer uma obra realista com animais que falam e cantam é uma tragédia anunciada por motivos óbvios –, mas também em termos de execução, já que até mesmo para que a homenagem ao clássico funcione, há de se ter um desenvolvimento que gire ao redor disso. Sai a tragédia shakespeareana infantojuvenil, entra a tragédia cinematográfica.