Um dos temas mais recorrentes da carreira do estadunidense Brian De Palma é a efemeridade das imagens enquanto registro da verdade, especialmente se tratando de cinema de gênero, uma das predileções estilísticas do diretor. Tanto um profissional exímio quanto um cinéfilo dedicado, a partir da década de 90, já tendo referenciado outros mestres como Hitchcock, Godard, Eisenstein, Antonioni e Coppola em suas obras, ele aproveitou sua consolidação como um dos nomes de maior sucesso da Nova Hollywood para lançar uma trilogia não-oficial mas muito mais autorreferencial: Síndrome de Caim, O Pagamento Final e por fim, o magnífico Olhos de Serpente.
O primeiro é uma espécie de amalgamação das suas patologias e arquétipos favoritos; o segundo é um épico criminal que distila uma frontalidade tanto narrativa quanto simbólica tão direta que é quase como uma antítese de sua carreira; e o terceiro, bom, é apenas um festim espalhafatoso de tudo aquilo que ele mais ama de forma completamente desinibida. Desde a performance de altíssima voltagem típica de Nicolas Cage, a narrativa do protagonista caindo acidentalmente numa grande conspiração, os longos planos-sequência e suas frequentes revisitações, a influência central da mídia tanto quanto mote como figura marginal da trama, a crítica sempre certeira aos denominadores mais cruéis da cultura americana e a supracitada efemeridade das imagens, tudo remete imediatamente a um ideal depalmiano de cinema.
O filme abre com um aparentemente glorioso plano-sequência de treze minutos ininterruptos que define toda a narrativa. Porém desde o início já expõe sutilmente as inverdades da trama, como os perceptíveis cortes no suposto plano-sequência que denunciam a ardilosa armação de posicionamento e ritmo de câmera pelo qual o diretor é renomado, a repórter televisiva sendo alertada para chamar o possível furação que está por vir de uma “tempestade tropical” para não assustar os telespectadores, a exposição flagrante da corrupção e adultério do policial Rick Santoro (Cage) ou até mesmo o fato de que Atlantic City é uma cópia de Las Vegas, a verdadeira capital mundial do trambique.
O primeiro corte assumido aparece para mostrar o ponto-de-vista de Santoro ao ser telefonado por uma pretendente que está dentro da arena. Coincidentemente no momento exato em que uma bala atinge o convidado de honra sentado atrás do policial, o secretário de defesa, que estava numa furtiva discussão com uma loira misteriosa (Carla Gugino). Quando uma segunda bala a atinge, ele a derruba para fora da linha de tiro e percebe duas coisas: o campeão mundial Lincoln Tyler (Stan Shaw) que devia estar nocauteado na verdade está consciente, e a loira misteriosa na verdade é uma morena usando peruca. Santoro então resolve iniciar uma investigação paralela mesmo após o suposto terrorista ser baleado pelo responsável de segurança, o Comandante da Marinha Kevin Dunne (Gary Sinise), que é também o melhor amigo do protagonista.
Ao interrogar Tyler sobre a luta, Santoro percebe que uma conspiração está formada, e num golpe de extrema coragem, é revelada antes da metade do filme. Descobre-se que o cabeça por trás dela é o próprio Dunn, um militar ressentido com as políticas do secretário assassinado e disposto a tudo, até crimes marciais, para “proteger a vida dos soldados americanos”, inclusive usando um palestino anti-isarelense (!) de bode expiatório. Para De Palma, é mais importante explorar “como” os eventos se desenvolvem através do exercício de seus perfeitamente tensos set-pieces do que esconder o mistério principal.
Conforme as peças vão se encaixando perfeitamente, se inicia um divertidíssimo jogo de gato-e-rato pelo cassino, mas é importante ressaltar que os longos flashbacks de exposição também são de extrema competência e artifício visual. O flashback de Tyler se disfarça como um POV introspectivo, indicando sua relutância em entregar luta, mas se revela como um truque de câmera. O flashback de Dunn é de fato um POV detalhista e elaborado, como precisa ser para convencer. E por fim, o flashback da falsa loura misteriosa, a inocente analista Julia Costello, é o mais variado visualmente, ainda que incompleto devido ao desconhecimento dela sobre a verdade.
Eventualmente Santoro é confrontado por Dunn, que acredita que o policial, devido a sua inclinação amoral, será facilmente subornado. Mas como as aparências enganam, este é comovido por um espírito misericordioso e decide proteger Julia. Em um momento inspirado, recusando-se a entregar a analista, Santoro cospe sangue diretamente nas insígnias do uniforme de seu ex-amigo, reforçando a diretíssima crítica ao militarismo americano, em plena época de governo Democrata. Quando tudo se resume a um confronto final entre Dunn e Santoro no armazém onde Julia está escondida, parece que o vilão vai conseguir escapar da justiça. No entanto o furacão faz o gigante globo eletrônico da fachada do cassino se desprender da estrutura e desviar a rota de uma viatura policial para dentro do armazém, encurralando Dunn ao mesmo tempo que o telejornal local filma tudo. Acuado, ele se resigna ao destino de um soldado e morre pelos seus ideais.
Santoro é considerado um herói civil pelos seus atos, mas logo suas práticas criminosas são descobertas e é abandonado pela mulher e amante. Antes de se entregar às autoridades Julia aborda Santoro e estes se despedem com um beijo e uma promessa de reencontro, em frente a fachada do cassino, agora sendo reconstruída depois da tempestade, “Pelo menos eu apareci na televisão”, ele se consola logo antes dos créditos subirem ao som de uma típica música pop de encerramento enquanto a câmera observa os construtores da obra. Esse final feliz típico é insinuado até os últimos segundos do filme, quando se vê que embutido no concreto está a joalheria usada pela companheira de crime de Dunn. Mentiras sempre são recicláveis.