Num determinado momento do documentário “No Intenso Agora” (2017), João Moreira Salles se dedica a falar de jovens franceses que, ativos participantes das manifestações de maio de 1968, não souberam lidar com a melancolia posterior. Nostálgicos de um tempo de luta e euforia (os melhores anos de suas vidas, seguidos pelo fortalecimento do conservadorismo gaullista), muitos deles cometeram suicídio. Sentimento parecido impregna os protagonistas de alguns filmes emblemáticos do Cinema Novo pós-golpe de 1964: Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho), de “O Desafio” (1965), Paulo Martins (Jardel Filho), de “Terra em Transe” (1967), Estevão (Paulo José), de “A Vida Provisória” (1968), e Miguel (Paulo César Pereio), de “O Bravo Guerreiro” (1968). Intelectuais de esquerda, todos mergulham em apatia e frustração após a tomada do poder pelos militares.
Parece possível começar a mapear a construção de um cinema semelhante no Brasil contemporâneo, feito sob o impacto de acontecimentos políticos como o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição de Jair Bolsonaro. “Os Sonâmbulos”, de Tiago Mata Machado, compõe um grupo de filmes que reverbera esse estado das coisas. Enquanto os documentários “O Processo” (2018), de Maria Augusta Ramos, e “Excelentíssimos” (2018), de Douglas Duarte, lançam olhares indisfarçadamente indignados para o show de horrores da deposição de Dilma, permanecendo numa posição de derrotados que ao menos ocupam o “lado certo da história”, “Os Sonâmbulos” se assemelha bastante a “Era Uma Vez Brasília” (2017), de Adirley Queirós, na captura da paralisia das esquerdas diante do avanço reacionário.
Os personagens de ambos os filmes são revolucionários que vagam por ruas desertas, geralmente à noite, jamais agindo diretamente contra o establishment. Mas o torpor apresentado por Queirós aparentemente caracteriza um estado passageiro. Se “Branco Sai, Preto Fica” (2014), do mesmo diretor, termina anunciando uma revolução que bombardeia o Congresso Nacional (eram tempos de perspectivas de radicalização democrática, após junho de 2013), “Era Uma Vez Brasília” absorve com amargor a derrota de 2016, mas sem deixar de, no final, marcar sua posição de resistência frente à nova realidade política.
Não há espaço para esse tipo de postura em “Os Sonâmbulos”, com sua narrativa atravessada por uma presença da morte, manifesta principalmente nas várias cenas que sugerem suicídios. A referência final à necessidade da vigília, que leva Clara Choveaux a quebrar a quarta parede, mesmo gesto dos personagens de Queirós no encerramento de “Era Uma Vez Brasília”, carrega considerável dose de pessimismo. De que adianta, afinal, a promessa da protagonista de que ela e seus companheiros de organização seguirão vigiando, quando eles são marcados, ao longo de todo o filme, pela inação? Diante do arbítrio instalado – e Machado é muito eficiente na construção da sensação de se viver sob o peso de um Estado de exceção, sem precisar, para isso, mostrar as ações repressivas –, qual a real utilidade da mera vigília, ainda que ideologicamente embasada?
Há, portanto, uma dimensão patética nos personagens de “Os Sonâmbulos” que os aproxima dos equivalentes cinemanovistas – Paulo Martins de metralhadora na mão, agonizando completamente sozinho em meio às dunas, pode ser uma referência aqui. Já os de “Era Uma Vez Brasília”, pelo contrário, são dotados de uma força proveniente de sua condição de marginalidade, habituados a sofrer violências dos poderosos mesmo em tempos democráticos – logo, habituados também a resistir. Nesse sentido, a relação de Machado com os homens e mulheres de seu filme é bem mais amarga, o que, como em Saraceni, Glauber, Dahl e Gomes Leite, contribui para a construção de imagens áridas, de difícil absorção imediata. A ausência de um filtro de gênero como o utilizado por Queirós acentua essa dificuldade.