Ostinato

Ostinato

Música é pensamento

Wallace Andrioli - 23 de janeiro de 2021

Ostinato. Repetição. O documentário de Paula Gaitán sobre o processo criativo de Arrigo Barnabé manipula, pela montagem, a cronologia da conversa que constitui a narrativa, para torná-la coerente com a forma como o artista define sua própria obra. Palavras ouvidas nos primeiros momentos do filme ressurgem no final, dessa vez sincronizadas com a imagem de Arrigo. A indicação de um livro de Haruki Murakami feita à diretora no debate de apresentação de Ostinato na Mostra de Tiradentes ressurge na diegese. O afílmico e o profílmico unidos pela repetição.

Gaitán captura aqui um músico que se autoproclama erudito-popular mas que se sente em certa dessintonia com o mundo em que vive. O público e a música que Arrigo produz não se conectam mais, o gosto contemporâneo entrou em processo de decadência… Esses são diagnósticos fragmentados do artista sobre o estado das coisas. Ele demonstra alguma dificuldade de elaborar esses pensamentos, de teorizar. Em meio à conversa, Gaitán se afasta para pegar um livro e pede que o homem continue falando. Arrigo responde tocando piano, expressão que lhe é própria, familiar. Música que é pensamento, como diz ao se referir a uma composição de Beethoven.

Mas a diretora opta por inserir no filme apenas pequenos excertos da obra do músico. Ostinato acaba se constituindo nesse fluxo entre palavras não totalmente articuladas e partes de músicas que hoje se comunicam com poucos. Esse é um documentário muito distante de qualquer biografia musical convencional, como tantas do cinema brasileiro recente. Interessa aqui o encontro desses dois artistas, a troca, o olhar atento da câmera da diretora para o longo silêncio de Arrigo, enquanto tenta organizar suas ideias sobre determinado assunto.

A maior parte de Ostinato transcorre em ambientes fechados, espaços propícios para o diálogo. Gaitán, no entanto, também registra breves interações de Arrigo com as ruas de São Paulo, que ele fita pela janela, como que tentando entender sua aparente falta de lógica, e pelas quais caminha, se misturando à multidão de homens comuns, mas logo se destacando, demonstração de certo deslocamento. A imagem do artista que emerge aqui é a de um gênio maldito, incompreendido, que lembra um pouco como Carlos Reichenbach filmou o poeta Orlando Parolini no curta-metragem Sangue Corsário (1980).

Mas esses momentos não duram muito e o Arrigo Barnabé que predomina em cena é o sujeito da conversa generosa e do conhecimento musical imenso. Presença agradável. Apesar de certa atmosfera soturna quando a câmera mira os espaços externos, Ostinato é embalado por essa sensação de papo bom, sobretudo a partir da maior presença da voz de Gaitán como interlocutora do protagonista-biografado-entrevistado. Conversa que poderia durar mais algumas horas em tela sem que o filme se tornasse enfadonho – ainda que inevitavelmente repetitivo, até para não deixar de ser coerente com o estilo de Arrigo.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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