Para Onde Voam as Feiticeiras

Para Onde Voam as Feiticeiras

Da ocupação de espaços como narrativa para o esvaziamento estético do próprio discurso

Matheus Fiore - 8 de outubro de 2020

Uma discussão recorrente na crítica e na cinefilia é a análise da junção entre forma e conteúdo. No fim das contas, nunca importa o posicionamento ideológico de uma obra de arte, e sim o modo como a estética é utilizada para transformar uma ideia em filme. Recorrendo a um velho clichê: o que importa não é o que é dito, mas como é dito. Para Onde Voam as Feiticeiras sem dúvidas é um filme que, analisando sob olhares de outros estudos – o sociológico ou o político –, é de fato um longa-metragem muito interessante. Mas por mais que haja quarenta minutos iniciais realmente muito interessantes, a impressão que passa é que, no meio do caminho, a estética desanda e só sobra seu belo discurso.

O filme de Carla e Eliane Caffé (a segunda responsável pelo ótimo Era o Hotel Cambridge) brinca com a forma documental para falar sobre a necessidade de figuras marginalizadas e apagadas historicamente ocuparem espaços públicos. Dos indígenas que sofrem um genocídio ininterrupto desde que os portugueses pisaram no Brasil pela primeira vez, à comunidade LGBTQ+ que cada vez mais se torna foco de violência à medida que ganha espaço no debate público.

A questão dos espaços é muito bem posta por Carla e Eliane Caffé. A escolha de construir Para Onde Voam as Feiticeiras quase que inteiramente na rua é um bom manifesto da importância de manter figuras oprimidas no centro do debate. Elas precisam estar em evidência, precisam estar fisicamente presentes nos espaços. O filme ainda se beneficia de uma sensibilidade ímpar das diretoras para pincelar participações de transeuntes, que mostram como, removendo os tabus e preconceitos, a inserção desse diálogo social com o brasileiro médio não é nem de longe tão complexa quanto muitas vezes pensamos.

A montagem (também de Eliane Caffé) é peça chave para construir uma espontaneidade nas cenas. O filme parece ser construído a partir de diálogos simples e ser retroalimentado pelo que as ruas entregam para os personagens. Se torna, portanto, um documentário bastante fluido, com uma narrativa que acaba sendo construída pela forma como esses manifestos políticos são recebidos por quem os observa. A imprevisibilidade criada é, curiosamente, o ponto alto, mas também o ponto fraco de Para Onde Voam as Feiticeiras.

Acontece que, lá para a metade do filme, as diversas manifestações artísticas que vemos parecem se esgotar, e os registros de Carla e Eliane não mais trazem algo de eficiente em questões de forma. A partir de dado momento, Para Onde Voam as Feiticeiras se torna apenas um meio para que seus personagens façam discursos belos e emocionados sobre suas trajetórias e sobre suas relações com a vida e com a sociedade que não os trata dignamente. De documentário inventivo e espontâneo, Feiticeiras vai para um mero registro de posicionamentos admiráveis, mas que nada acrescentam em termos estéticos para o todo. A obra parece ter sua narrativa sequestrada, e o discurso não mais funciona por meio de uma proposta cinematográfica, mas unicamente por fala. Aos poucos, a forma se esgota, e sobra apenas o discurso.

Nada disso tira os méritos de Para Onde Voam as Feiticeiras, mas não deixa de ser um pouco decepcionante ver um filme que começa tão bem em termos ideológicos e estéticos aos poucos se desconstruir até sobrar somente seu discurso. E por mais belo e necessário que um discurso seja, ele não mantém nenhum filme de pé. Porque o que torna um filme bom não é seu discurso, e sim como ele é sustentado como obra de arte.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a edição de 2020 do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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